Prata em Deleuze e Guattari (1997 [1980])
O devir-mulher, o devir-criança da música aparecem no problema de uma maquinação da voz. Maquinar a voz é a primeira operação musical. Sabe-se como o problema foi resolvido na música ocidental, na Inglaterra e na Itália, de duas maneiras diferentes: de um lado, a voz de cabeça da contralto, que canta “para além de sua voz”, ou cuja voz trabalha na cavidade dos selos paranasais, a parte anterior da garganta e o palato, sem apoiar-se no diafragma nem transpor os brônquios; por outro lado, a voz de ventre dos castrati, “mais forte, mais volumosa, mais lânguida”, como se eles tivessem dado uma matéria carnal ao imperceptível, ao impalpável e ao aéreo. Dominique Fernandez escreveu sobre isso um belo livro, onde, precavendose felizmente de qualquer consideração psicanalítica sobre uma ligação da música e da castração, mostra que o problema musical de uma maquinaria da voz implicava necessariamente a abolição da robusta máquina dual, isto é, da formação molar que distribui as vozes em “homem ou mulher”. [Nota de rodapé 77: Dominique Fernandez, La rose des Tudors, Julliard (e o romance Porporino, Grasset). Fernandez cita a música pop como um retorno tímido à grande música vocal inglesa. Seria preciso, com efeito, considerar as técnicas de respiração circular, quando se canta inspirando e expirando, ou de filtragem de som conforme zonas de ressonância (nariz, testa, maçãs do rosto — utilização propriamente musical do rosto).] Ser homem ou mulher não existe mais em música. Não é certeza, no entanto, que o mito do andrógino invocado por Fernandez seja suficiente. Não se trata de mito, mas de devir real. É preciso que a própria voz atinja um devir-mulher ou um devir-criança. E está nisso o prodigioso conteúdo da música. Sendo assim, como o nota Fernandez, não se trata de imitar a mulher ou de imitar a criança, mesmo se é uma criança que canta. É a própria voz musical que se torna criança, mas, ao mesmo tempo, a criança se torna sonora, puramente sonora. Jamais criança alguma teria podido fazê-lo ou, se o faz, é tornando-se também outra coisa que não criança, criança de um outro mundo estranhamente celeste e sensual. Em suma, a desterritorialização é dupla: a voz desterritorializa-se num devir-criança, mas a própria criança que ela se torna é desterritorializada, inengendrada, está em devir-. “Asas deram impulso à criança”, diz Schumann. Reencontramos o mesmo movimento de ziguezague nos devires-animais da música: Mareei More mostra como a música de Mozart é atravessada por um devir-cavalo, ou por devires-pássaro. Mas nenhum músico se diverte “fazendo-se” de cavalo ou de pássaro. O bloco sonoro não tem por conteúdo um devir-animal sem que o animal ao mesmo tempo não se torne em sonoridade alguma outra coisa, algo de absoluto, a noite, a morte, a alegria — certamente não uma generalidade nem uma simplicidade, mas uma hecceidade, a morte que está aqui, a noite que está ali. A música toma por conteúdo um devir-animal; mas o cavalo, por exemplo, adquire aí, como expressão, as pequenas batidas de timbale, aladas como tamancos que vêm do céu ou do inferno; e os pássaros tomam expressão em grupetos (gruppeti), apojaturas, notas picadas que fazem deles almas. [Nota de rodapé 78: Marcel More, Le dieu Mozart e le monde des oiseaux, Gallimard.] O que forma a diagonal em Mozart são os acentos, primeiro os acentos. Se não seguimos os acentos, se não os observamos, recaímos num sistema pontual relativamente pobre. O homem músico desterritorializa-se no pássaro, mas é um pássaro ele mesmo desterritorializado, “transfigurado”, um pássaro celeste que entra num devir tanto quanto aquilo que entra num devir com ele. O capitão Ahab está engajado num devir-baleia irresistível com Moby Dick; mas é preciso ao mesmo tempo que o animal, Moby Dick, torne-se pura brancura insustentável, pura muralha branca resplandecente, puro fio de prata que se estende e se torna flexível “como” uma moça, ou se retorce como um chicote, ou ergue-se como um parapeito. Pode ser que a literatura alcance às vezes a pintura, e até a música? E que a pintura alcance a música? (More cita os pássaros de Klee; em compensação, ele não compreende Messiaen quanto ao canto dos pássaros). Nenhuma arte é imitativa, não pode ser imitativa ou figurativa: suponhamos que um pintor “represente” um pássaro; de fato, é um devir-pássaro que só pode acontecer à medida que o próprio pássaro esteja em vias de devir outra coisa, pura linha e pura cor. De modo que a imitação destrói a si própria, à medida que aquele que imita entra sem saber num devir que se conjuga com o devir daquilo que ele imita, sem que ele o saiba. Só se imita, portanto, caso se fracasse, quando se fracassa. Nem o pintor e nem o músico imitam um animal; eles é que entram em um devir-animal, ao mesmo tempo que o animal torna-se aquilo que eles queriam, no mais profundo de seu entendimento com a Natureza. [Nota de rodapé 79: Vimos que a imitação podia ser concebida como uma semelhança de termos culminando num arquétipo (série), ou como uma correspondência de relações constituindo uma ordem simbólica (estrutura); mas o devir não se deixa reduzir nem a uma nem a outra. O conceito de mimesis é não só insuficiente, mas radicalmente falso.]. Que o devir funcione sempre a dois, que aquilo em que nos tornamos entra num devir tanto quanto aquele que devém, é isso que faz um bloco, essencialmente móvel, jamais em equilíbrio. O quadrado perfeito é o de Mondrian, que bascula numa ponta e produz uma diagonal entreabrindo seu fechamento, arrastando um e outro lado. (Deleuze e Guattari 1997 [1980]:105-7)
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1997 [1980]. 1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível. (Trad.: Suely Rolnik) In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Volume 4. Rio de Janeiro: Editora 34, pp.11-113.