Prata e ouro em Lévi-Strauss (2008 [1958])
Quando se passa da linguagem para os outros fatos sociais, é surpreendente que Haudricourt se deixe seduzir por uma concepção empirista e naturalista das relações entre meio ambiente e sociedade, quando ele mesmo tanto fez para mostrar o caráter artificial da relação que os une. Acabo de mostrar que a linguagem não é assim tão arbitrária; mas a relação entre natureza e sociedade o é bem mais do que o artigo em questão quer nos fazer crer. Será preciso lembrar que todo o pensamento mítico, o ritual inteiro, consistem numa reorganização da experiência sensível no interior de um sistema semântico? Que as razões pelas quais diversas sociedades escolhem utilizar ou rejeitar [144] determinados produtos naturais e, quando os selecionam, as modalidades do uso que deles fazem, dependem não só de suas propriedades intrínsecas, mas também do valor simbólico que lhes é atribuído? Evitarei retomar aqui exemplos que estão em qualquer manual, e invocarei uma única autoridade, não suspeita de idealismo, a de Marx. Na Crítica da economia política, ele investiga as razões que teriam levado os homens a escolher os metais preciosos como padrão de valor. Enumera várias delas, ligadas às “propriedades naturais” do ouro e da prata, como homogeneidade, uniformidade relativa, divisibilidade em quaisquer frações que sempre podem ser reunificadas pela fundição, peso específico elevado, raridade, mobilidade, inalterabilidade, e prossegue: “Por outro lado, o ouro e a prata não são apenas produtos negativamente superabundantes e supérfluos; suas propriedades estéticas fazem deles a matéria natural do luxo, do ornamento, das necessidades de se enfeitar, em suma, a forma positiva do supérfluo e da riqueza. Eles são, em certa medida, a luz solidificada que se extraiu do mundo subterrâneo; a prata, de fato, reflete todos os raios luminosos em sua mistura original, e o ouro, a cor mais potente, o vermelho. Mas o sentido das cores é a forma mais popular do senso estético em geral. Jacob Grimm mostrou as relações etimológicas, em diferentes línguas indo-germânicas, que ligavam os nomes dos metais preciosos às cores” (Marx 1899: 216). Assim, é o próprio Marx que nos convida a extrair sistemas simbólicos, subjacentes tanto à linguagem como às relações que o [145] homem tem com o mundo. “Somente o hábito da vida cotidiana nos faz crer que é banal e simples que uma relação de produção tome a forma de um objeto” (Id. ibid.: 14) (Lévi-Strauss 2012 [1958]:143-5)
E, de fato, o xamã não recupera apenas o nigapurbalele, cuja descoberta é imediatamente seguida pela descoberta, situada no mesmo plano, de outros purba, do coração, dos ossos, dos dentes, do cabelo, das unhas e dos pés (pp. 401-08 e 435-42). Pode surpreender que não se veja, nessa lista, o purba que rege os órgãos mais afetados, os reprodutivos. Como observam os editores de nosso texto, é porque o purba do útero não é considerado como vítima, mas como responsável pelo distúrbio patológico. Muu e suas filhas, as muugan, são – como já indicara Nordenskiöld (1938: 364 ss) – as forças que presidem ao desenvolvimento do feto e lhe conferem seus kurngin, ou capacidades. O texto não faz, porém, nenhuma menção a esses atributos positivos. Muu aparece aí como um promotor [270] de desordem, uma “alma” específica que capturou e paralisou as demais “almas” específicas, destruindo assim a cooperação que garantia a integridade do “corpo principal” (cuerpo jefe em espanhol, pp. 430, 435) e da qual ele tirava seu niga. Mas, ao mesmo tempo, Muu deve ficar onde está, pois a expedição que irá liberar os purba pode provocar a evasão de Muu pelo caminho que permanece temporariamente aberto. O que explica as detalhadas precauções que ocupam a última parte do canto. O xamã mobiliza os donos dos animais ferozes para guardar o caminho, as pistas são embaralhadas, estendem-se fios de ouro e prata e, durante quatro dias, os nelegan vigiam e brandem seus bastões (pp. 505-35). Muu não é, portanto, uma força fundamentalmente má, é uma força desviada. A explicação do parto difícil é um desvio, operado pela “alma” do útero, de todas as demais “almas” das diferentes partes do corpo. Assim que estas estiverem liberadas, ela pode e deve retomar a colaboração. Sublinhe-se desde já a precisão com que a ideologia indígena acompanha o conteúdo afetivo do distúrbio fisiológico, tal como se pode apresentar, não formulada, à consciência da paciente. (Lévi-Strauss 2012 [1958]:269-70)
LÉVI-STRAUSS, Claude. 2012 [1958]. Antropologia estrutural. (Trad.: Beatriz Perrone-Moisés). São Paulo: Cosac Naify.