Mercúrio em Lévi-Strauss (2008 [1958])
Sem esperarem pelo conselho de Gurvitch, os etnólogos que ele critica dedicaram a maior parte de sua vida científica a observar, descrever e analisar, com uma minúcia por vezes fastidiosa, as “formas de sociabilidade”, os “grupos” e as mínimas nuances da vida coletiva, que com as estruturas compõem o ser individual, impossível de confundir com outros, das sociedades em que viveram. Nenhum de nós jamais sonhou em substituir por um tipo ou uma estrutura fixa essa realidade palpitante. A busca de estruturas intervém num segundo estágio, quando, depois de termos observado o que existe, tentamos extrair daí os únicos elementos estáveis – e sempre parciais – que permitem comparar e classificar. À diferença de Gurvitch, contudo, não partimos de uma definição a priori do que é estruturável e do que não o é. Temos plena consciência da impossibilidade de saber de antemão onde e em que nível de observação a análise estrutural pode ser aplicada. Nossa [464] experiência do concreto ensinou-nos que, muito freqüentemente, são os aspectos mais fluidos, os mais fugidios, da cultura que dão acesso a uma estrutura; daí a atenção apaixonada, quase maníaca, que damos aos detalhes. Mantemos sempre em mente o exemplo das ciências naturais, cujo progresso de uma estrutura a outra (sempre mais inclusiva e mais explicativa do que a primeira) sempre consistiu em descobrir uma estruturação melhor por meio de fatos mínimos, que as hipóteses anteriores tinham deixado de lado por considerarem-nos “a-estruturais”. Um exemplo disso são as anomalias do periélio de Mercúrio, “a-estruturais” no sistema de Newton, que serviriam de base para a descoberta de uma estrutura melhor pela teoria da relatividade. A etnologia, ciência residual por excelência, já que a parte que lhe cabe é o “resíduo” de sociedades que as ciências humanas tradicionais não tinham se dignado a tratar (justamente porque as consideravam “a-estruturais”), só pode, por vocação própria, utilizar o método dos resíduos. (Lévi-Strauss 2012 [1958]:463-4)
LÉVI-STRAUSS, Claude. 2012 [1958]. Antropologia estrutural. (Trad.: Beatriz Perrone-Moisés). São Paulo: Cosac Naify.