Ferro em Lévi-Strauss (2008 [1958])
Portanto, quando Tylor escreve: “Uma vez que se pode inferir uma lei de um conjunto de fatos, o papel da história detalhada fica largamente superado. Se vemos um ímã atrair um pedaço de ferro, e se conseguimos extrair da experiência a lei geral de que ímãs atraem o ferro, não cabe nos esforçarmos para aprofundar a história do ímã em questão” (1865:3), na realidade, ele nos prende num círculo. Pois, à diferença dos físicos, os etnólogos ainda não têm certeza quanto à determinação dos objetos que correspondem, em seu caso, ao ímã e ao ferro, ou sobre a possibilidade de identificar superficialmente objetos que se apresentam superficialmente como dois ímãs ou dois pedaços de ferro. Só uma “história detalhada” poderá dirimir suas dúvidas em cada caso. A crítica à noção de totemismo tem fornecido, há bastante tempo, um excelente exemplo dessa dificuldade. Se limitarmos sua aplicação aos casos incontestáveis em [23] que a instituição se apresenta com todas as suas características, tais casos serão por demais especiais para permitirem formular uma lei de evolução religiosa. E, se extrapolarmos a partir de apenas alguns elementos, será impossível, sem uma “história detalhada” das idéias religiosas de cada grupo, saber se a presença de nomes animais ou vegetais, ou de determinadas práticas ou crenças relativas a espécies animais ou vegetais, podem ser explicadas como vestígio de um sistema totêmico anterior, ou por razões totalmente diferentes, como por exemplo a tendência lógico-estética do espírito humano de conceber sob a forma de grupos os conjuntos – físico, biológico e social – que compõem seu universo, cuja generalidade foi demonstrada pelo estudo clássico de Durkheim e Mauss (1901-02). (Lévi-Strauss 2012 [1958]:22-3)
O quadro do mundo uterino, povoado de monstros fantásticos e de animais ferozes, pode ser interpretado do mesmo modo, como confirma diretamente, aliás, o informante indígena, que diz “são os animais que intensificam os males da parturiente”, ou seja, as próprias dores personificadas. Aqui também o canto parece ter como principal objetivo descrevê-las e nomeá-las para a paciente, apresentando-as numa forma que possa ser apreendida pelo pensamento, consciente ou inconsciente. É Tio Jacaré que anda por ali, com seus olhos saltados e seu corpo sinuoso e malhado, encolhendo-se e agitando a cauda, é Tio Jacaré Tiikwalele, do corpo reluzente, que mexe suas reluzentes nadadeiras, cujas nadadeiras invadem o espaço, empurram tudo, arrastam tudo, é Nele Ki(k) kirpanalele, o polvo, cujos tentáculos grudentos ficam [279] saindo e entrando, e muitos outros, como Aquele-cujo-chapéu-é-vermelho e Aquele-cujo-chapéu-é-multicolorido, e os animais protetores, o Tigre-Negro, o Animal-vermelho, o Animal-bicolor, o Animal-cor-de-poeira. Todos eles presos por uma corrente de ferro, de língua para fora, babando, espumando, com a cauda flamejante e os dentes ameaçadores, rasgando tudo, “tudo como sangue, tudo vermelho” (pp. 253-98). (Lévi-Strauss 2012 [1958]:278-9)
As páginas acima levam a uma outra concepção. A lógica do pensamento mítico pareceu-nos tão exigente quanto a que fundamenta o pensamento positivo e, no fundo, pouco diferente. Pois a diferença está menos na qualidade das operações intelectuais do que na natureza das coisas a que se referem tais operações. Já faz bastante tempo que os tecnólogos perceberam, em seu campo, que um machado de ferro não é superior a um machado de pedra porque um seria “mais bem feito” do que o outro. Ambos são igualmente bem feitos, mas o ferro não é a mesma coisa que a pedra. […] Talvez um dia descubramos que a mesma lógica opera no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem sempre pensou igualmente bem. O progresso – se é que o termo [331] se aplica – não teria tido por palco a consciência, e sim o mundo, em que uma humanidade dotada de faculdades constantes teria continuamente se deparado, no decorrer de sua longa história, com novos objetos. (Lévi-Strauss 2012 [1958]:330-1)
LÉVI-STRAUSS, Claude. 2012 [1958]. Antropologia estrutural. (Trad.: Beatriz Perrone-Moisés). São Paulo: Cosac Naify.