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A origem virtual de todas as perspectivas (Viveiros de Castro 2002)

A origem virtual de todas as perspectivas (Viveiros de Castro 2002)

Um compasso deve ter uma de suas pernas firme, para que a outra possa girar-lhe à volta. Escolhemos a perna correspondente à natureza como nosso suporte, deixando a outra descrever o círculo da diversidade cultural. Os índios parecem ter escolhido a perna do compasso cósmico correspondente ao que chamamos ‘cultura’, submetendo assim a nossa ‘natureza’ a uma inflexão e variação contínuas. A ideia de um compasso capaz de mover as duas pernas ao mesmo tempo – um relativismo finalizado – seria assim geometricamente contraditória, ou filosoficamente instável. […] Mas não devemos esquecer em primeiro lugar que, se as pontas do compasso estão separadas, as pernas se articulam no vértice: a distinção entre natureza e cultura gira em torno de um ponto onde ela ainda não existe. Esse ponto, como Latour (1991 [Jamais fomos modernos]) tão bem argumentou, tende a se manifestar em nossa modernidade apenas como prática extra-teórica, visto que a Teoria é o trabalho de purificação e separação do “mundo do meio” da prática em domínios, substâncias ou princípios opostos: em Natureza e Cultura, por exemplo. O pensamento ameríndio – todo pensamento mitoprático, talvez – toma o caminho oposto. Pois o objeto da mitologia está situado exatamente no vértice onde a separação entre Natureza e Cultura se radica. Nessa origem virtual de todas as perspectivas, o movimento absoluto e a multiplicidade infinita são indiscerníveis da imobilidade congelada e da unidade impronunciável. […] Em segundo lugar, e por fim: se os índios têm razão, então a diferença entre os dois pontos de vista não é uma questão cultural, e muito menos de mentalidade. Se os contrastes entre relativismo e perspectivismo ou entre multiculturalismo e multinaturalismo forem lidos à luz, não de nosso relativismo multicultural, mas da doutrina indígena, é forçoso concluir que a reciprocidade de perspectivas se aplica a ela mesma, e que a diferença é de mundo, não de pensamento (Viveiros de Castro 2022:398-9)

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2002. Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. In: A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, pp347-99.