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O campo da antropologia em 1960, segundo Lévi-Strauss (2013 [1960])

O campo da antropologia em 1960, segundo Lévi-Strauss (2013 [1960])

LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013. O campo da antropologia. In: Antropologia estrutural dois. (Trad.: Beatriz Perrone-Moisés) São Paulo: Cosac Naify, pp.11-43.[1960]

NUMEROLOGIA LÉVISTRAUSSIANA

Foi há pouco mais de um ano, em 1958, que o Collège de France criou uma cadeira de antropologia social. […] A própria data de sua deliberação, caros colegas, atesta – pelo curioso retorno do número 8, já ilustrado pela aritmética de Pitágoras, pela tabela periódica dos corpos químicos e pela lei de simetria dos polvos – que, proposta em 1958, a criação de uma cadeira de antropologia social renova uma tradição da qual não poderia escapar este que vos fala, ainda que o desejasse. […] Cinquenta anos antes da decisão inicial aqui tomada, Sir James George Frazer proferia na Universidade de Liverpool a aula inaugural da primeira cadeira no mundo a receber o nome de antropologia social. Cinquenta anos antes – acaba de completar-se um século – nasciam, em 1858, dois homens, Franz Boas e Émile Durkheim, que a posteridade confirmará como fundadores, ou pelo menos mestres de obra que edificaram, um nos Estados Unidos e o outro na França, a antropologia tal como a conhecemos hoje. (Lévi-Strauss 2013:11-2)

PASTEUR e DURKHEIM no BRASIL

[C]aros colegas, alguns de vocês, que compartilham comigo velhas lembranças, poderão confirmar que por volta de 1935, quando nossos amigos brasileiros queriam nos explicar o que os tinha levado a escolher missões francesas para formar suas primeiras universidades, citavam sempre dois nomes. O primeiro, evidentemente, era Pasteur. O outro era Durkheim. (Lévi-Strauss 2013:12)

A MISSÃO de MAUSS: EXORCIZAR DURKHEIM

Mesmo em suas reflexões mais ousadas, Mauss nunca sentiu que se afastava da linha durkheimiana. […] A missão de Mauss foi dar acabamento ao prodigioso edifício surgido do solo na passagem do demiurgo. Era preciso exorcizar dele alguns fantasmas metafísicos que continuavam arrastando suas correntes, colocá-lo ao abrigo dos ventos glaciais da dialética, do trovejar dos silogismos, do relampejar das antinomias… Mas Mauss protegeu a escola durkheimiana de outros perigos. (Lévi-Strauss 2013:13)

CRÍTICA às REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO

quando relemos hoje As regras do método sociológico, não podemos evitar pensar que Durkheim foi um tanto parcial na aplicação desses princípios. Invocou-os para constituir o social como categoria independente, mas sem se dar conta de que essa nova categoria, por sua vez, abarcava todas as sortes de especificidades, correspondentes aos diversos aspectos sob os quais a apreendemos. Antes de afirmar que a lógica, a linguagem, o direito, a arte ou a religião são projeções do social, não teria sido conveniente esperar que ciências particulares tivessem aprofundado o modo de organização e a função diferencial de cada um desses códigos, possibilitando assim a compreensão da natureza das relações que há entre eles? (Lévi-Strauss 2013:14)

A TOTALIDADE FOLHADA de MAUSS (o social na experiência como rede de interrelações funcionais entre planos)

[N]a teoria do “fato social total” […], a noção de totalidade é menos importante do que o modo muito particular como Mauss a concebe: folhada, diríamos, formada por múltiplos planos distintos e conectados. Em vez de surgir como um postulado, a totalidade do social se manifesta na experiência: instância privilegiada que é possível apreender no nível da observação, em ocasiões bem precisas, quando se “põem em ação […] a totalidade da sociedade e de suas instituições” ([1924a] 2003: 309). Ora, essa totalidade não suprime o caráter específico dos fenômenos, que seguem sendo “ao mesmo tempo jurídicos, econômicos, religiosos, e mesmo estéticos e morfológicos”, diz Mauss no Ensaio sobre a dádiva (loc. cit.); tanto que ela consiste, finalmente, na rede de inter-relações funcionais entre todos esses planos. (Lévi-Strauss 2013:14)

A SOLUÇÃO SOCIOLÓGICA PRÉ-FABRICADA de DURKHEIM (desencarnação e automatismo)

A sociologia durkheimiana corria o risco de desencarnação e também outro, de que Mauss a protegeu, com igual sucesso: o automatismo. Frequentemente, desde Durkheim – e mesmo em autores que se consideravam livres de sua ascendência doutrinal – a sociologia apareceu como produto de um saque apressado à história, à psicologia, à linguística, à ciência econômica, ao direito e à etnografia. Contentava-se em acrescentar aos frutos dessa pilhagem suas receitas: qualquer que fosse o problema que se lhe colocasse, podia-se ter a certeza de que receberia uma solução “sociológica” pré-fabricada. (Lévi-Strauss 2013:15)

A SÍNTESE EMPÍRICA e SUBJETIVA do FATO SOCIAL

Os fatos sociais não são meros fragmentos esparsos, são vividos por homens e essa experiência subjetiva, tanto quanto suas características objetivas, é uma forma da realidade deles. […] Tal síntese empírica e subjetiva fornece a única garantia de que a análise prévia, levada até as categorias inconscientes, nada deixou escapar. (Lévi-Strauss 2013:16)

ANTROPOCENTRISMO ANTROPOLÓGICO (anntropólogo como engenheiro social)

[J]amais saberemos se o outro, com o qual não podemos apesar de tudo nos confundir, opera, a partir dos elementos de sua existência social, uma síntese exatamente correspondente àquela que elaboramos. Mas não é preciso ir tão longe. Basta – e para isso o sentimento interno é suficiente – que a síntese, ainda que aproximativa, pertença à experiência humana. Devemos ter certeza disso, pois que estudamos homens. E como nós mesmos somos homens, isso nos é possível. (Lévi-Strauss 2013:16)

Percebe-se desde logo a originalidade da antropologia social: em vez de opor explicação causal e compreensão, ela consiste em descobrir um objeto que seja ao mesmo tempo objetivamente muito afastado e subjetivamente muito concreto, e cuja explicação causal possa fundar-se nessa compreensão que não é, para nós, senão uma forma suplementar de prova. Uma noção como a de empatia nos inspira muita desconfiança, naquilo que implica de irracionalismo e misticismo acrescentados. Ao formularmos uma exigência de prova suplementar, imaginamos a antropologia mais a partir do modelo do engenheiro, que concebe e constrói máquinas mediante uma série de operações racionais – mas é preciso que funcionem, a certeza lógica não basta. A possibilidade de testar em si mesmo a experiência íntima do outro é apenas um dos meios disponíveis para obter essa última satisfação empírica, de que sentem necessidade igualmente as ciências físicas e as ciências humanas – menos uma prova, talvez, do que uma garantia. (Lévi-Strauss 2013:17)

De todas as ciências, ela é certamente a única que faz da subjetividade mais íntima um meio de demonstração objetiva. Pois é objetivo o fato de o mesmo espírito que se entregou à experiência e deixou-se moldar por ela tornar-se palco de operações mentais que não abolem as precedentes e contudo transformam a experiência em modelo, possibilitando outras operações mentais. No fim das contas, a coerência lógica destas últimas se assenta na sinceridade e na honestidade daquele que, como o pássaro explorador da fábula, pode dizer “Estive lá, isso aconteceu comigo – É como se vocês lá estivessem”, e consegue, de fato, comunicar tal convicção. (Lévi-Strauss 2013:24-5)

ANTROPOLOGIA SOCIAL = SEMIOLOGIA

O que é, afinal, a antropologia social? […] Parece-me que ninguém chegou mais perto de defini-la […] do que Ferdinand de Saussure, quando, ao apresentar a linguística como parte de uma ciência ainda por vir, reserva-lhe o nome de semiologia, e lhe atribui como objeto o estudo da vida dos signos no seio da vida social. (Lévi-Strauss 2013:17-8)

“O QUE ISSO SIGNIFICA?” = “PARA QUE SERVE?”

Quando consideramos um sistema de crença – o totemismo, digamos – ou uma forma de organização social – clãs unilineares, casamento bilateral –, a pergunta que nos fazemos é exatamente “o que isso significa?”; e, para a respondermos, procuramos traduzir em nossa linguagem regras que são primariamente dadas numa linguagem diferente. […] Ocorreria o mesmo quanto a outros aspectos da realidade social, tais como o instrumental, as técnicas, os modos de produção e de consumo? Trata-se, aparentemente, de objetos e não de signos, uma vez que o signo é, segundo a célebre definição de Peirce, “o que substitui algo para alguém”. O que, afinal, um machado substitui, e para quem? […] Consideradas isoladamente, técnicas podem se apresentar como um dado bruto, herança histórica ou resultado de um compromisso entre as necessidades do homem e as contingências do meio. Porém, quando as situamos nesse inventário geral das sociedades que a antropologia se esforça por constituir, aparecem sob uma nova luz, já que as imaginamos como equivalendo a escolhas que cada sociedade parece fazer (linguagem cômoda, que é preciso livrar de seu antropomorfismo) entre muitas possíveis, cujo quadro estabeleceremos. Nesse sentido, concebe-se que certo tipo de machado de pedra possa ser um signo: num determinado contexto, ocupa, para o observador capaz de compreender seu uso, o lugar de um instrumento diferente que outra sociedade utiliza com os mesmos fins. (Lévi-Strauss 2013:18-9)

CARBONO 14

Na época em que foi formulada, por volta de 1920, essa concepção, inspirada na distinção durkheimiana entre circumfusa e praeterita, marcava uma reação salutar aos abusos da escola difusionista. Mas desde então a “história conjectural”, como dizia Radcliffe-Brown, não sem desprezo, aperfeiçoou e refinou seus métodos, notadamente graças às escavações estratigráficas, à introdução da estatística em arqueologia, à análise dos pólens, à utilização do carbono 14 e, sobretudo, graças à colaboração cada vez mais estreita que se instaura entre etnólogos e sociólogos de um lado, arqueólogos e pré-historiadores, do outro. De modo que podemos nos perguntar se a desconfiança de Radcliffe-Brown quanto às reconstituições históricas não corresponderia a uma etapa do desenvolvimento científico que em breve será ultrapassada. (Lévi-Strauss 2013:20-1)

Até alguns poucos anos atrás, admitia-se que as instituições aristocráticas da Polinésia eram fatos de introdução recente, de uns poucos séculos, por grupos de conquistadores vindos de alhures. Mas eis que a medição da radioatividade residual de vestígios orgânicos provenientes da Melanésia e da Polinésia revela que a distância entre as datas de ocupação dessas duas regiões é menor do que se supunha e é preciso, diante disso, modificar as concepções quanto à natureza e unidade do sistema feudal, pois, pelo menos nessa parte do mundo, já não se exclui – desde os belos estudos de Guiart – que ele seja anterior à chegada dos conquistadores e que certas formas de feudalismo possam surgir em humildes sociedades de horticultores. (Lévi-Strauss 2013:21)

O encurtamento da pré-história do Velho Mundo e o alongamento da do Novo Mundo – que o carbono 14 permite considerar – talvez levem à conclusão de que as civilizações que se desenvolveram dos dois lados do Pacífico foram ainda mais aparentadas do que parece, e, tomando-as cada qual em si, a entendê-las de outro modo. (Lévi-Strauss 2013:22)

Por mais importante que seja a perspectiva histórica, só poderemos atingi-la após longas pesquisas que – a medida da radioatividade e o estudo dos pólens são prova disso – nem sempre são de nossa alçada. (Lévi-Strauss 2013:27)

A SOCIEDADE como UM SER TOTAL (naturalcultural), CONCRETO e CONECTADO

Não basta, com efeito, que fenômenos possam ser ditos sociais para que a antropologia os reivindique para si. […] [O]s fatos sociais que estudamos se manifestam em sociedades que são, cada uma delas, um ser total, concreto e conectado. Nunca perdemos de vista o fato de que as sociedades existentes resultam de grandes transformações advindas na espécie humana em determinados momentos da pré-história e em certos pontos da Terra, e que uma cadeia ininterrupta de eventos reais liga tais fatos àqueles que podemos observar. […] Essa continuidade cronológica e espacial entre a ordem da natureza e a ordem da cultura […] também fundamenta o historicismo de Boas. Ela explica por que a antropologia, mesmo social, declara-se solidária da antropologia física, cujas descobertas espreita com certa avidez. (Lévi-Strauss 2013:22-3)

EXPERIMENTAÇÃO e MODELO

Ocorre que, em antropologia, a experimentação precede tanto a observação como a hipótese. Uma das originalidades das pequenas sociedades que estudamos está em que cada uma delas constitui uma experiência feita, em razão de sua relativa simplicidade e do número restrito de variáveis necessárias para explicar seu funcionamento. Por outro lado, porém, essas sociedades estão vivas, e não temos nem tempo nem meios de agir sobre elas. Em comparação com as ciências naturais, gozamos de uma vantagem e sofremos um inconveniente: encontramos nossas experiências já preparadas, mas elas são incontroláveis. É normal, assim, que tentemos substitui-las por modelos, isto é, sistemas de símbolos que salvaguardem as propriedades características da experiência mas que, diferentemente da experiência, podemos manipular. (Lévi-Strauss 2013:24)

FINITO ILIMITADO (caleidoscópio)

Num caleidoscópio, a combinação de elementos idênticos sempre produz novos resultados. (Lévi-Strauss 2013:25)

ESTRUTURA em DEVIR (Durkheim)

“Não há dúvida de que os fenômenos que concernem à estrutura tem algo de mais estável do que os fenômenos funcionais; mas, entre as duas ordens de fatos, há apenas diferenças de grau. A própria estrutura está no devir […] Ela se forma e se recompõe incessantemente; ela é a vida em certo grau de consolidação, e distingui-la da vida de que ela deriva, ou da vida que ela determina, equivale a dissociar coisas inseparáveis.” (Durkheim apud Lévi-Strauss 2013:26-7)

O SONHO SECRETO da ANTROPOLOGIA SOCIAL

ela pertence às ciências humanas, seu nome proclama isso suficientemente, mas, se fica conformada com seu purgatório junto às ciências sociais, é porque não deixa de ter esperança de acordar entre as ciências naturais na hora do juízo final. (Lévi-Strauss 2013:28)

ESTRUTURA, EVENTO e TRANSFORMAÇÃO

Na verdade, é a natureza dos fatos que estudamos que nos leva a distinguir neles o que diz respeito à estrutura e o que pertence ao evento. […] Existe, com efeito, uma relação muito estreita entre as noções de transformação e de estrutura, que ocupa um lugar tão importane em nossos trabalhos. […] Para que um arranjo seja estruturado, é preciso que satisfaça duas condições: que seja um sistema, regido por uma coesão interna, e que tal coesão, impossível de perceber num sistema isolado, se revele no estudo das transformações, graças às quais podem ser encontradas propriedades similares em sistemas aparentemente diferentes. (Lévi-Strauss 2013:27)

[O]s signos e os símbolos só podem desempenhar seu papel na medida em que pertencem a sistemas regidos por leis internas de implicação e exclusão; e […] o que caracteriza um sistema de símbolos é o ser transformável, em outras palavras, traduzível na linguagem de outro sistema mediante substituições. (Lévi-Strauss 2013:28)

A VERDADE RACIONAL da ANTROPOLOGIA

Mediante idas e vindas sucessivas entre o laboratório e o campo, buscaríamos ir preenchendo progressivamente a lacuna entre as duas séries, uma conhecida e a outra desconhecida, intercalando uma série de formas intermediárias. No final, não teríamos feito senão elaborar uma linguagem, cujos únicos méritos seriam o ser coerente, como qualquer linguagem, e explicar com um número reduzido de regras fenômenos até então considerados muito díspares. Na falta de uma inacessível verdade factual, teríamos atingido uma verdade racional. (Lévi-Strauss 2013:30)

DURKHEIM e MAUSS PRÉ-ESTRUTURALISTAS INSTINTIVOS

Mas não estaríamos dando as costas para essa natureza humana quando, para extrair nossas invariantes, substituímos os dados da experiência por modelos que então submetemos a operações abstratas, como o algebrista com suas equações? Fomos acusados disso. Porém, além de a objeção ter pouco peso para o prático – que sabe com que fidelidade obsessiva à realidade concreta ele paga a liberdade que oferece a si mesmo de sobrevoá-la por breves instantes – eu gostaria de lembrar que, ao fazê-lo, a antropologia social apenas recupera para si uma parte esquecida do programa que Durkheim e Mauss lhe haviam traçado. […] No prefácio da segunda edição das Regras do método sociológico, Durkheim se defende da acusação de ter abusivamente separado o “coletivo do individual. A separação, diz ele, é necessária, mas ele não exclui a possibilidade de, “no futuro, chegar-se a conceber a possibilidade de uma psicologia formal, que seria uma espécie de terreno compartilhado pela psicologia individual e a sociologia […] O que seria preciso fazer”, prossegue Durkheim, “seria buscar, pela comparação dos temas míticos e das tradições populares, das línguas, de que modo as representações sociais se atraem e se excluem, fundem-se umas nas outras ou se distinguem […]” (Durkheim [1895] 1950: XXV). Essa investigação, observa ele para concluir, diz antes respeito à lógica abstrata. […] Mauss orienta a antropologia “para a busca do que é comum aos homens […] Os homens comunicam-se por símbolos […] porém, mais precisamente, eles só podem ter esses símbolos e se comunicar por eles, porque possuem os mesmos instintos” ([1924b] 2003: 329). (Lévi-Strauss 2013:34-5)

PORQUE (+PRIMITIVOS)=(+UNIVERSAL)? (motivos [1] filosóficos, [2] brindes de objetividade)

Se seu objetivo final, dirão, é atingir certas formas universais de pensamento e de moralidade (pois o Ensaio sobre a dádiva encerra com conclusões de moral), por que privilegiar as sociedades que vocês chamam de primitivas? Por hipótese, não deveríamos chegar aos mesmos resultados partindo de quaisquer sociedades?(Lévi-Strauss 2013:35)

Quais são, então, as razões de nossa predileção por essas sociedades que, na falta de termo melhor, chamamos primitivas, embora não o sejam de modo algum? (Lévi-Strauss 2013:36)

É na medida em que as sociedades primitivas estão muito afastadas da nossa que podemos atingir, nelas, os “fatos de funcionamento generalizado” de que falava Mauss ([1924a] 2003: 311), que têm chance de ser “mais universais” e de possuir “uma vantagem de realidade”. Nessas sociedades, cito ainda Mauss (loc. cit.), “apreendemos homens, grupos e seus comportamentos […] vemo-los moverem-se como em mecânica se movem massas e sistemas”. Essa observação privilegiada, porque distanciada, implica certamente algumas diferenças de natureza entre essas sociedades e a nossa: a astronomia não exige apenas que os corpos celestes estejam distantes, é também preciso que o tempo não passe neles no mesmo ritmo, ou a Terra teria deixado de existir muito tempo antes de a astronomia surgir. (Lévi-Strauss 2013:38)

ANTROPOLOGIA=FILOSOFIA (=/= SOCIOLOGIA)

Como escreveu Merleau-Ponty, “toda vez que o sociólogo [mas é no antropólogo que ele está pensando] volta às fontes vivas de seu saber, àquilo que nele opera como meio de compreender as formações culturais mais afastadas dele, pratica espontaneamente filosofia” ([1960] 1991: 118-19). Com efeito, a pesquisa de campo, pela qual começa toda carreira em etnologia, é mãe e ama da dúvida, atitude filosófica por excelência. Essa “dúvida antropológica” não consiste apenas em saber que nada se sabe, mas em expor claramente o que se acreditava saber e sua própria ignorância aos insultos e desmentidos que infligem às ideias e aos hábitos mais caros que podem contradizê-los mais radicalmente. Ao inverso do que indica a aparência, é, cremos, por seu método estritamente filosófico que a etnologia se distingue da sociologia. O sociólogo objetiva, temendo ser enganado. O etnólogo não tem esse temor, porque a sociedade distante que estuda não é nada para ele, e porque ele não se vê de saída condenado a extirpar dela todas as nuances e detalhes, até mesmo os valores; ou, resumindo, tudo aquilo em que o observador de sua própria sociedade corre o risco de se ver implicado. (Lévi-Strauss 2013:36)

O PROBLEMA DA ALTERIDADE

Ao escolher sujeitos e objetos radicalmente distanciados, o antropólogo corre, no entanto, um risco, o de que a consciência que se toma do objeto não atinja suas propriedades intrínsecas, limitando-se a exprimir sua posição relativa e sempre cambiante do sujeito em relação a ele. É bem possível, efetivamente, que o suposto conhecimento etnológico esteja condenado a permanecer tão bizarro e inadequado quanto o que um visitante exótico poderia ter de nossa própria sociedade. […] A seu modo, os etnólogos poderiam estar cedendo à mesma tentação quando se permitem – como fazem com frequência – reinterpretar costumes e tradições indígenas com o objetivo não declarado de melhor enquadrá-los nas teorias em voga. […] Assim, a teoria do totemismo constituiu-se “para nós”, não “em si”, e nada garante que, na forma atual, não continue sendo gerada por uma ilusão comparável. (Lévi-Strauss 2013:36-7)

HISTÓRIA (quente, afastamentos diferenciais) e ESTRUTURA (fria, consenso) como DISTINÇÃO TEÓRICA que JUSTIFICA A ANTROPOLOGIA

É claro que as sociedades ditas primitivas estão na história; seu passado é tão antigo quanto o nosso, pois que remonta às origens da espécie. […] Mas se especializaram em caminhos diferentes daqueles que nós escolhemos. Talvez tenham permanecido próximas de condições de vida muito antigas, em certos aspectos; o que não exclui que, em outros, tenham-se afastado delas mais do que nós. […] Mesmo estando na história, essas sociedades parecem ter elaborado ou conservado uma sabedoria particular, que as impele a resistir desesperadamente a qualquer modificação de sua estrutura capaz de permitir que a história irrompa em seu seio. Aquelas que, ainda recentemente, haviam protegido melhor suas características distintivas se apresentam a nós como sociedades cuja principal preocupação é perseverar em seu ser. O modo como exploram o meio garante, ao mesmo tempo, um nível de vida modesto e a proteção dos recursos naturais. Apesar de sua diversidade, as regras de casamento que elas aplicam apresentam, no ver dos demógrafos, a característica comum de limitar ao extremo e manter constante a taxa de natalidade. Finalmente, uma vida política fundada no consenso, e que só admite decisões tomadas em unanimidade, parece ter sido concebida para excluir o emprego do motor da vida coletiva que utiliza afastamentos diferenciais entre poder e oposição, maioria e minoria, exploradores e explorados. […] Numa palavra, essas sociedades que poderíamos chamar “frias”, porque seu meio interno está próximo do zero de temperatura histórica, se distinguem, por suas populações reduzidas e seu modo mecânico de funcionamento, das sociedades “quentes”, surgidas em diversos pontos do globo após a revolução neolítica, onde diferenciações entre castas e classes são constantemente solicitadas para gerar devir e energia. […] Essa distinção tem um alcance sobretudo teórico, pois não há provavelmente sociedade concreta alguma que, no conjunto e em cada uma de suas partes, corresponda exatamente a um tipo ou ao outro. E, também noutro sentido, a distinção permanece relativa, se for verdade, como cremos, que a antropologia social responde a uma dupla motivação: retrospectiva, visto que os gêneros de vida primitivos estão à beira do desaparecimento e precisamos nos apressar em registrar suas lições; e prospectiva, na medida em que, tomando consciência de uma evolução cujo ritmo está se acelerando, já nos sentimos os “primitivos” de nossos bisnetos, e buscamos validar a nós mesmos, aproximando-nos daqueles que foram – e ainda são, por pouco tempo – tais como parte de nós persiste em permanecer. […] Por outro lado, as sociedades que eu chamava de “quentes” tampouco possuem tal caráter no absoluto. Quando, logo após a revolução neolítica, as grandes cidades-estado da bacia mediterrânea e do Extremo Oriente impuseram a escravidão, construíram um tipo de sociedade em que os afastamentos diferenciais entre os homens – uns dominadores, outros dominados – podiam ser utilizados para produzir cultura num ritmo até então inconcebível e insuspeitado. Em relação a essa fórmula, a revolução maquinária do século XIX representa menos uma evolução orientada no mesmo sentido do que o esboço impuro de uma solução diferente, por muito tempo ainda fundada nos mesmos abusos e injustiças, enquanto possibilitava a transferência para a cultura da função dinâmica de que a revolução proto-histórica incumbira a sociedade. […] Se – Deus nos livre – fosse esperado de um antropólogo que pressagiasse o futuro da humanidade, ele certamente não o conceberia como um prolongamento ou uma superação das formas atuais, mas antes ao modo de uma integração, unificando progressivamente as características próprias das sociedades frias e quentes. Sua reflexão reataria com o velho sonho cartesiano de colocar, como autômatos, as máquinas a serviço dos homens; seguiria seu rastro na filosofia social do século XVIII, e até Saint-Simon. Pois este, anunciando a passagem “do governo dos homens para a administração das coisas”, antecipava ao mesmo tempo a distinção antropológica entre cultura e sociedade e a conversão cuja possibilidade os progressos da teoria da informação e da eletrônica nos permitem ao menos entrever, de um tipo de civilização que inaugurou outrora o devir histórico, mas à custa da transformação dos homens em máquinas, para uma civilização ideal que conseguisse transformar as máquinas em homens. Então, tendo a cultura sido incumbida integralmente da fabricação do progresso, a sociedade estaria livre de uma maldição milenar que a obrigava a sujeitar os homens para que houvesse progresso. Doravante, a história se faria sozinha, e a sociedade, situada fora e acima da história, poderia assumir, novamente, a estrutura regular e como que cristalina que não contradiz, como nos ensinam as sociedades primitivas mais bem preservadas, a humanidade. Nesse panorama, ainda que utópico, a antropologia social encontraria sua mais alta justificação, pois que as formas de vida e pensamento que estuda não mais teriam um interesse meramente histórico e comparativo. Corresponderiam a uma chance permanente do homem, sobre a qual a antropologia social, sobretudo nas horas mais sombrias, teria por missão velar. […] Nossa ciência não poderia montar essa guarda vigilante – e nem mesmo teria concebido a importância e a necessidade disso – se, em regiões longínquas da terra, homens não tivessem resistido obstinadamente à história e não tivessem permanecido como prova viva do que queremos salvar. (Lévi-Strauss 2013:38-40)

ANTROPOLOGIA e COLONIALISMO (Renascimento)

Se a sociedade está na antropologia, a própria antropologia está na sociedade, pois a antropologia foi capaz de alargar progressivamente seu objeto de estudo, até abarcar a totalidade das sociedades humanas. Contudo, ela surgiu num período tardio da história destas, e num pequeno setor da terra habitada. Mais do que isso, as circunstâncias de seu aparecimento têm um sentido, que só se pode compreender devolvendo-as ao contexto de um desenvolvimento social e econômico particular. Pode-se então imaginar que vieram acompanhando uma crise de consciência, quase um remorso, de que a humanidade tenha podido permanecer alienada de si mesma por tanto tempo e, principalmente, de que a fração da humanidade que produziu a antropologia seja precisamente a mesma que fez de tantos outros homens objeto de execração e desprezo. Dizem alguns que nossa pesquisa é uma sequela do colonialismo. As duas coisas com certeza estão ligadas, mas nada seria mais equivocado do que tomar a antropologia como o último avatar do espírito colonial, uma ideologia vergonhosa, que lhe daria a chance de sobreviver. […] O que chamamos de Renascimento foi, para o colonialismo e para a antropologia, um verdadeiro nascimento. Entre ambos, confrontados desde sua origem comum, travou-se durante quatro séculos um diálogo equívoco. Se o colonialismo não tivesse existido, o surgimento da antropologia teria sido menos tardio; mas talvez a antropologia não tivesse sido incitada – o que veio a ser seu papel – a colocar o homem inteiro em causa em cada um de seus exemplos particulares. Nossa ciência atingiu a maturidade no dia em que o homem ocidental começou a entender que jamais entenderia a si mesmo enquanto na face da terra uma raça, ou um só povo sequer, continuasse sendo tratado por ele como objeto. Somente então a antropologia pode se afirmar no que ela é: um esforço, renovando e expiando o Renascimento, de estender o humanismo à medida da humanidade. (Lévi-Strauss 2013:42)

HOMENAGEM aos AMERÍNDIOS (“selvagens”)

Permitam-me pois, caros colegas, depois de ter prestado homenagem aos mestres da antropologia social no início desta aula, dirigir minhas últimas palavras aos selvagens, cuja obscura tenacidade nos permite ainda atribuir aos fatos humanos sua verdadeira dimensão. Homens e mulheres que, no momento em que vos falo, a milhares de quilômetros daqui, nalguma savana comida por queimadas ou numa floresta banhada de chuva, retornam ao acampamento para compartilhar o exíguo alimento e evocar juntos seus deuses. Esses índios dos trópicos e seus semelhantes que me ensinaram seu parco saber, o qual no entanto contém o essencial dos conhecimentos que fui incumbido por vocês de transmitir a outros; que em breve, lamentavelmente, estarão a caminho da extinção, sob o choque das doenças e dos modos de vida – para eles mais horríveis ainda – que levamos a eles. Para com quem contraí uma dívida da qual jamais serei liberado, mesmo que no lugar onde vocês me colocaram, eu pudesse fazer justiça à ternura que me inspiram e ao meu reconhecimento para com eles, continuando a me mostrar tal como fui entre eles e não gostaria de deixar de ser entre vocês: seu aprendiz, e testemunha. (Lévi-Strauss 2013:42-3)

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