Vida eletrônica como reserva de credulidade em Mbembe (2020 [2016])
No entendimento clássico, a ilusão se contrapunha à realidade. Tomando os efeitos por causas, a ilusão consagrava o triunfo das imagens e do mundo das aparências, dos reflexos e do simulacro. Fazia parte do mundo da ficção, por oposição ao mundo real, surgido da tessitura íntima das coisas e da vida. A demanda por um excedente imaginário, necessário para a vida cotidiana, não apenas foi acelerada. Ela se tornou irreprimível. Esse excedente imaginário não é percebido como um complemento a uma existência que seria mais “real” por estar supostamente mais ajustada ao ser e à sua essência. Por muitos, ela é vivida como o motor do real, como a própria condição de sua plenitude e de seu esplendor. Outrora confiada às religiões de salvação, a produção desse excedente hoje é delegada cada vez mais ao capital e aos mais variados tipos de objetos e tecnologias. […] Tanto o mundo dos objetos e máquinas quanto o próprio capital se apresentam cada vez mais como uma espécie de religião animista. Nem sequer o status da verdade deixa de ser questionado. Certezas e convicções são tidas por verdades. Nada exige raciocínio. Basta acreditar e se render. Em decorrência disso, a deliberação pública (um dos elementos essenciais da democracia) não consiste mais em discutir e buscar juntos e diante dos olhos de todos os cidadãos a verdade e, em última instância, a justiça. Como a grande oposição não é mais a que separa o verdadeiro do falso, o pior passa a ser agora a dúvida. Pois na luta concreta que nos opõe aos nossos inimigos, a dúvida bloqueia a liberação total das energias voluntaristas, emocionais e vitais necessárias ao emprego da violência e, se preciso for, ao derramamento de sangue. […] As reservas de credulidade também foram ampliadas. Paradoxalmente, essa ampliação se fez acompanhar pela aceleração exponencial dos desenvolvimentos tecnológicos e das inovações industriais, pela digitalização ininterrupta dos fatos e das coisas e pela relativa generalização daquilo que convém chamarmos de a vida eletrônica e seu duplo, a vida roboticamente ajustada. Está de fato começando uma fase sem precedentes na história da humanidade, durante a qual será cada vez mais difícil, senão impossível, dissociar os organismos humanos dos fluxos eletrônicos, a vida dos humanos da dos processadores. Essa fase foi possibilitada pelo know-how acumulado em matéria de armazenamento de volumes colossais de fluxos, pela extrema potência e velocidade de seu processamento e pelos progressos realizados na composição algorítmica. O ponto final dessa virada digital-cognitiva deve ser a infiltração generalizada dos chips no interior dos tecidos biológicos. O acoplamento humano-maquínico, já em curso, não só tem levado à gênese de novas mitologias do objeto técnico, mas tem tido também como consequência imediata o questionamento do estatuto do sujeito moderno oriundo da tradição humanista. (Mbembe 2020:94-5)
MBEMBE, Achille. 2020. Políticas da inimizade. (Trad. Sebastião Nascimento) São Paulo: N-1 edições.