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Guerra?

Guerra?

No texto “A crise sanitária incentiva a nos prepararmos para as mudanças climáticas”, publicado no Le Monde em 25/03/2020, Bruno Latour fez coro ao vírus francês e afirmou que “[p]ela primeira vez depois de anos, milhões de pessoas, trancadas em casa, reencontram este luxo esquecido: o tempo para refletir e discernir sobre o que geralmente os faz se mover inutilmente em todos os sentidos”. Por outro lado, notou que “o mesmo vírus não age da mesma maneira em Taiwan, em Singapura, em Nova York ou em Paris”, algo que nem mesmo o tal vírus francês pareceu notar.

Mais importante do que isso, o texto de Latour nos lembra da “confusão”, aparentemente difícil de perceber no discurso público brasileiro, “em torno de um ‘estado de guerra’ contra o vírus”. O vírus, diz Latour, “não é mais que um elo de uma corrente” que também inclui “gestão de estoques de máscaras ou de testes, a regulamentação de direitos de propriedade, os hábitos civis e os gestos de solidariedade”. Por isso não concordo com Judith Butler (2020) quando disse que “[o] vírus por si só não discrimina, mas nós humanos certamente o fazemos, moldados e movidos como somos pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo” [1]. Ora, os vírus são tão formados “pelos poderes casados do nacionalismo, do racismo, da xenofobia e do capitalismo” quanto nós. Ou, nas palavras de Paul Preciado (2020): “o vírus atua à nossa imagem e semelhança, não faz mais do que replicar, materializar, intensificar e estender a toda a população as formas dominantes da gestão biopolítica e necropolítica que já estavam trabalhando no território nacional e em suas fronteiras”, “cada sociedade pode ser definida pela epidemia que a ameaça e pelo modo de se organizar frente a ela”.

Em outras palavras, a ideia de uma “guerra” contra um vírus é problemática. Tão problemática como a de que médicos são “soldados” (e logo segue uma hierarquização da prática médica ao modelo militar), ou a de que empresários são “médicos”, injetando dinheiro (liberado emergencialmente para salvar as empresas) na economia. Neste sentido, Latour destaca a diferença entre uma “crise ecológica” e uma “crise sanitária”.

Na “crise sanitária, se trata de “alguns milhares de humanos […] por um tempo”, “a administração tem o papel pedagógico bastante clássico, e sua autoridade coincide perfeitamente com as velhas fronteiras nacionais”. Já na “crise ecológica”, “se trata literalmente de todo mundo” e “para sempre”, e “é a administração que deve aprender com um povo multifacetado, em múltiplas escalas”. Em resumo, se na “crise sanitária”, “é de fato o corajoso povo que deve reaprender, como na escola primária, a lavar as mãos e a tossir no cotovelo”, na “crise ecológica “é o Estado que se encontra em situação de aprendizagem”. O que nos leva de volta à confusão envolvida na imagem da “guerra”:

[N]a crise sanitária, talvez seja verdade que os humanos, colocados em conjunto, “lutem contra” os vírus – mesmo que estes não se interessem nem um pouco por nós e sigam seu caminho da garganta ao nariz, nos matando sem que esperemos. […] A situação é tragicamente inversa na mudança ecológica: dessa vez, o agente patogênico cuja virulência terrível modificou as condições de existência de todos os habitantes do planeta não é o vírus, são os humanos! E não todos os humanos, mas alguns que lutam contra nós sem declarar guerra. Para essa guerra, o Estado nacional está menos preparado, mal calibrado, tão mal desenhado quanto possível, pois as frentes são múltiplas e atravessam cada um de nós.

Latour abriu seu texto propondo a “hipótese”, que ainda “será necessário testar”, de que: “a crise sanitária está preparando, induzindo e estimulando as pessoas a se prepararem para as mudanças climáticas”. Acho a hipótese utópica, tipicamente latouriana. E o próprio autor parece entregar a Deus o teste. O ponto alto do texto é a alternativa ao discurso da “guerra”. Não precisamos de mais uma “guerra”, contra o vírus ou qualquer outra coisa.

Nota
[1] Também é o caso de desconfiar da frase de Karl Lauterbach, que Butler cita e que dá título ao seu texto, quando sabemos que não se trata de o capitalismo “ter” limites, mas sim de ele sobreviver estendendo-os sempre mais, indefinidamente.

Referências
BUTLER, Judith. 2020. O capitalismo tem seus limites. (Trad. Artur Renzo) Blog da Boitempo 20/03. Publicado originalmente no site da Verso, em 19/03.
LATOUR, Bruno. 2020. A crise sanitária incentiva a nos prepararmos para as mudanças climáticas. (Trad.: Gustavo Teramatsu; Luciano Duarte; Wagner Nabarro) AGB – Campinas, 25/03. Publicado originalmente no Le Monde em 25/03/2020.
PRECIADO, Paul B. 2020. Aprendendo com o vírus. (Trad.: Gustavo Teramatsu; Wagner Nabarro) AGB – Campinas, 28/03. Publicado originalmente no El País em 28/03/2020.