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Carros (Lévi-Strauss 2002 [1962]; e Guattari 1992)

Carros (Lévi-Strauss 2002 [1962]; e Guattari 1992)

LÉVI-STRAUSS (forças naturais)

O índio americano que decifra um rastro por meio de índices imperceptíveis, o australiano que identifica sem hesitar as pegadas deixadas por um membro qualquer de seu grupo (Meggit 1961) não agem diferentemente de nós quando dirigimos um automóvel e percebemos com um simples golpe de vista uma leve mudança de direção das rodas, uma flutuação da marcha do motor ou mesmo a suposta intenção de um olhar no momento de ultrapassar ou evitar um carro. Por mais incongruente que possa parecer, essa comparação é rica de ensinamentos, pois o que aguça nossas faculdades, estimula nossa percepção, dá segurança a nossos julgamentos é, de um lado, que os meios de que dispomos e os riscos que corremos são incomparavelmente aumentados pela potência mecânica do motor, de outro, que a tensão resultante do sentimento dessa força incorporada se exerce em uma série de diálogos com outros motoristas, cujas intenções, semelhantes às nossas, traduzem-se em signos que nos obstinamos em decifrar porque são precisamente signos que solicitam intelecção. […] Um observador exótico julgaria, sem dúvida, que a circulação de automóveis no centro de uma grande cidade ou numa auto-estrada ultrapassa as faculdades humanas; de fato, ela as ultrapassa, quando coloca frente a frente não homens ou leis naturais mas sistemas de forças naturais humanizadas pela intenção dos motoristas e homens transformados em forças naturais pela energia física de que se fazem mediadores. Não se trata mais da operação de um agente sobre um objeto inerte nem da ação de resposta de um objeto promovido ao papel de agente sobre um sujeito que se teria desprovido em seu favor sem nada lhe pedir em troca, ou seja, de situações que comportem de um lado e de outro, uma certa dose de passividade: os seres em questão se defrontam ao mesmo tempo como sujeitos e como objetos e, no código que utilizam, uma simples variação da distância que os separa tem a força de uma intimação muda. (Lévi-Strauss 2002:247-8)

GUATTARI (submissão maquínica;sujeição cibernética)

Será importante, para uma pragmática esquizoanalítica, determinar que tipo de componente se afirma sobre os outros. […] Ao dirigir um carro, é uma certa submissão maquínica que passa ao primeiro plano. (Guattari 1992:76)

Quando dirijo um carro, minha atração pelo espaço frontal equivale a colocar entre parênteses meu esquema corporal, deixando de lado a visão e os membros que se acham em posição de sujeição cibernética à máquina automobilística e aos sistemas de sinalização emitidos pelo meio rodoviário. (Guattari 1992:153)

REFERêNCIAS
GUATTARI, Félix. 1992. Caosmose: um novo paradigma estético. (Trad. Ana Lúcia de Oliveira; Lúcia C. Leão) São Paulo: Ed.34.
LÉVI-STRAUSS. Claude. 2002. O pensamento selvagem. (Trad. Tânia Pellegrini) Campinas: Papirus. [1962]