A propósito de um livro sobre modos de existência (Latour 2012)
LATOUR, Bruno. 2012. Biografia de uma investigação – a propósito de um livro sobre modos de existência. São Paulo: Editora 34.
A VERDADE INTRÍNSECA DA MEDIAÇÃO
O que é certo é que eu saía desse período de formação [doutorado, 1975] armado de uma enorme mas muito paradoxal certeza no fato de que, quanto mais uma malha de textos fosse interpretada, transformada, artificial, retomada, recosturada, repetida e reformada, e a cada vez de forma diferente, mais chance ela teria em manifestar sua verdade intrínseca, com a condição […] de que se saiba distinguir de outro modo a verdade, a informação pura e perfeita [Duplo Clique]… Um longo combate contra a erradicação das mediações ia começar. (Latour 2012:4-5).
ASSIMETRIA (só antropologizar o centro da periferia e a periferia do centro)
Existe aí uma flagrante assimetria: os brancos antropologizam os negros – sim, e com muita eficiência -, mas eles mesmos não se deixam antropologizar. Ou então eles o fazem de modo falsamente distante, “exótico”, prendendo-se aos aspectos mais arcaicos de suas próprias sociedades – as festas municipais, a crença na astrologia, as refeições de primeira comunhão -, e não ao que me salta aos olhos (olhos que, na verdade, foram educados pela leitura coletiva do Anti-Édipo): as técnicas industriais, a economia, o “desenvolvimento”, a razão científica, etc., ou seja, tudo o que constitui o coro estrutural dos impérios em vias de expansão. (Latour 2012:6)
IDEOGRAFIA DE INSTRUMETOS
Como bom etnógrafo, eu sabia que precisava desconfiar das idéias que flutuavam no ar, mas eu não acreditava que a sequência dos “registros” de toda essa ideografia de instrumentos imprimisse nessas famosas idéias uma força tão fértil. E, no entanto, naquela misteriosa fábrica de acontecimentos, tudo se esclareceria subitamente caso eu aceitasse acompanhar passo a passo as transformações dos documentos aos quais os pesquisadores vestidos de branco destinavam um interesse ao mesmo tempo obsessivo e completamente descontraído. (Latour 2012:7-8)
AGÊNCIA NÃO-HUMANA
Então eu logo compreendi que os personagens não humanos também tinham aventuras que poderíamos acompanhar se abandonássemos a ilusão de que eles eram ontologicamente diferentes dos seres humanos. O que vale é apenas a agency, suas capacidades de atuação e os diversos papéis que lhes foram atribuídos. (Latour 2012:9)
A SEMIÓTICA DO ACTANTE
Um mundo então se revelava […]: os coletivos […] diferem-se pela atuação que eles atribuem aos actantes, pelos testes que eles destinam a seus personagens […]. O poder da semiótica derivava, justamente, de sua sublime e radical indiferença ao realismo aparente dos sujeitos e dos atores sociais: essa era a condição ideal para seguir a originalidade das ciências que foram aniquiladas pela tarefa de imitar o mundo, corrompidas por serem tantas vezes confundidas com a informação sobre lamentáveis “matters of fact” isolados de qualquer questão. Somente a semiótica dos escritos e das inscrições científicas, livre do realismo comum, poderia implantar esse modo totalmente original de referência. (Latour 2012:9)
INSCRIÇÕES (nem sujeito, nem objeto)
Na verdade, o caminho das inscrições ignorava ao mesmo tempo o sujeito conhecedor e o objeto conhecido; o modo de existência do conhecimento científico parecia merecer um habitat melhor do que o no man’s land entre as palavras e as coisas. (Latour 2012:10)
ETNOMETODOLOGIA
O estranho Gênio do jargão da etnometodologia vem da descoberta de que todo curso de ação, incluindo o mais comum, é constantemente interrompido por um minúsculo hiatus que requer, de tempos em tempos, a retomada inventiva do ator munido de seus próprios micrométodos. (Latour 2012:10)
[N]enhuma continuidade de um curso de ação pode acontecer sem uma repetição inventiva que fornecesse ao ator social as capacidades reflexivas, as fontes de inovação, e até mesmo as sociologias e ontologias cujo desdobramento ultrapassam em muito as capacidades do etnólogo. O pesquisado sempre sabe mais do que o pesquisador. (Latour 2012:10-1)
A ideia de que o ator não fosse mais considerado um “idiota cultural” (“a cultural dope“) ressoava maravilhosamente com o actante explorado pela semiótica. (Latour 2012:11)
SIMONDON
Assim como as ciências compreendidas em sua prática não podiam ser mantidas no estreito âmbito da epistemologia, as técnicas, sobretudo as mais modernas, não podiam ser mantidas na simples ideia de uma ação eficaz sobre a matéria: elas tinham a ver com a magia, com a religião, com a filosofia; elas tinham seu próprio mundo; eram cheias de métodos, artimanhas, cálculos, metafísica, e até mesmo moral; e, desconstruindo as fronteiras com os temas humanos, representavam um imenso desafio para a descrição etnográfica ou sociológica. Mas, além disso, de uma forma ainda mais radical, elas povoaram o coletivo com atores não humanos que, por um tipo de delegação, eram relevantes aos atores humanos pela quantidade vertiginosa de habilidades imprevistas. Na minha opinião e na de Callon, a armadura técnica era o que havia de mais “social” e uma sociedade, uma vez que se voltasse à etimologia do adjetivo e se permitisse seguir todas as associações necessárias à extensão de uma rede. Principalmente se a ela forem acrescentadas as técnicas intelectuais que se aprendeu a seguir a partir das pesquisas de laboratórios, e que acabaram misturando-se em toda parte com as organizações técnicas. Às máquinas, devia-se acrescentar os escritórios; às engrenagens, as técnicas contáveis; à resistência dos materiais, as agências de padronização. (Latour 2012:12-3)
ANTROPOTECNIA, ANT e PERFORMANCE
Se os babuínos manifestavam uma complexidade social tão extraordinária, totalmente digna de Garfinkel, eles só faziam uso de suas patas. Era isso que confirmava – a Callon e a mim – nossas intuições sobre a fabricação técnica da sociedade: o que caracteriza os seres humanos não é a emergência do social, mas o desvio, a tradução, a inflexão de todos os cursos de ação em dispositivos técnicos cada vez mais complicados (mas não necessariamente mais complexos). Alguns anos depois de meu retorno desse trabalho de campo queniano, em 1979, escrevemos o texto que fundou a teoria do ator-rede, Unscrewing the great Leviathan, propondo uma teoria social bastante aberta para absorver as associações entre seres humanos e não humanos, sobretudo fazendo da mudança de escala a consequência de um emprego das técnicas materiais bem como organizacionais. A performatividade do social pelas ciências, incluindo a ciência econômica, financeira, administrativa, abria-se, assim, de forma mais ampla à pesquisa empírica. (Latour 2012:14-5)
DO SOCIAL às ASSOCIAÇÕES
Ao passar do social às associações, o analista aproveitava-se, enfim, de uma liberdade de manobra tão grande quanto a de seus informantes, em vez de se fechar no estreito quadro da “dimensão social” de fenômenos científicos, técnicos, cujo conteúdo deveria escapar-lhe completamente. O que se pretendia observar eram as redes socio-técnicas em vias de expansão. (Latour 2012:15)
IRREDUÇÕES
Com uma única intuição – a distinção entre as relações de força e as relações de razão faz com que tanto a força quanto a razão sejam incompreensíveis – misturada a uma completa e totalmente despercebida contradição: a intenção de conferir a todas as associações a mesma metalinguagem, em termos de tradução, redes e enteléquias. (Latour 2012:17)
O LIVRO COMO OBJETO TÉCNICO
A ausência de um narrador de carne e osso em uma narrativa ficcional não é uma propriedade semiótica da ficção mas do livro como objeto técnico; sem o livro, o narrador seria um contador tão pouco ausente daquilo que enuncia quanto o manipulador de marionetes em um espetáculo de bunkaru. (Latour 2012:18)
SCIENCE IN ACTION
Seguindo a circulação responsável pela produção de fatos e pela construção de máquinas, Science in Action pode ser lido como uma aplicação da teoria das redes, o que ele certamente não deixa de ser, mas também como um estudo de três regimes de verdade: a referência científica, os arranjos técnicos, ambos opondo-se a esse Gênio do Mal da informação Duplo Clique. (Latour 2012:20-1)
PESQUISA
Sem me contradizer, eu poderia ser ao mesmo tempo filósofo, antropólogo e sociólogo: tudo leva à pesquisa, tudo surge dela. (Latour 2012:23)