Reticulação em Combes (1999)
COMBES, Muriel. 1999. Simondon: individu et collectivité – Pour une philosophie du transindividuel. Paris: PUF.
RETICULAÇÃO ÉTICA
Numa tal ética, o sujeito se eterniza afirmando seu caráter relativo, isto é, relacional, inscrevendo o melhor que pode seus atos na rede dos outros atos. Mas essa inscrição não é uma simples integração, […] pois o poder de amplificação que define todo ato ético excede a simples relação de harmonia entre os membros da comunidade. Agir eticamente, para um sujeito, significa, com efeito, se afirmar como “ponto singular de uma infinidade aberta de relações” (IPC, p. 254), construir um campo de ressonância para outros atos, ou prolongar, ele mesmo, atos num campo de ressonância construído por outros; é participar de um empreendimento de transformação coletiva, de uma produção de novidade em comum, na qual cada um se transforma ao oferecer aos outros um potencial de transformação. Ora, esta é a definição de individuação coletiva, que se opera na dimensão do transindividual. (Combes 1999:107)
RETICULAÇÃO PARA ALÉM DA TECNOCRACIA
E parece mesmo que, bem no interior do pensamento simondoniano sobre a técnica, a tematização da reticularidade seja o que nos permite escapar da universalidade da normatividade tecnológica. (Combes 1999:108)
ÉTICA RETICULAR (não normativa)
A reticularidade, condição da ressonância imediata dos atos numa estruturação de potencial em comum, é o que faz passar de um horizonte normativo para um horizonte de amplificação do agir. A fidelidade ao sentido do devir é aqui subordinada ao desdobramento transdutivo dos atos em rede, sendo a rede não a mediação do ato, mas seu meio [le réseau n’étant pas le moyen de l’acte mais son milieu]. (Combes 1999:108)
NORMATIVIDADE TÉCNICA como ÉTICA RETICULAR NÃO NORMATIVA
O caráter reticular da organização das técnicas confere ao mundo técnico uma capacidade de condicionar a ação humana como tal. (Combes 1999:109)
RETICULARIDADE vs. UTILIDADE
Essa compreensão da tecnicidade como caracterizada pela reticularidade é precisamente o que permite interromper radicalmente a descrição da técnica pela ótica da categoria de mídia [moyen], de abandonar, em suma, o esquema da utilidade, adequado apenas à ferramenta. Aqui, como antes, a reticularidade (os conjuntos técnicos integrados) se opõe ao hilemorfismo (da ferramenta). E o esquema da rede, antitético àquele do hilemorfismo, parece mesmo constituir, aos olhos de Simondon, uma arma contra ele, uma possibilidade de sair do modo hilemórfico do pensamento e da acão. (Combes 1999:110)
AS DUAS NORMATIVIDADES TÉCNICAS EM SIMONDON
Existe realmente, em Simondon, a idéia de uma normatividade da técnica. Mas ela distingue entre, de um lado, uma normatividade contida nos objetos técnicos, independente da normatividade social e que pode mesmo se tornar a fonte de novas normas numa “comunidade fechada” (IPC, p. 264-265), e, do outro lado, uma normatividade da organização reticular do mundo técnico como condicionando o agir humano. (Combes 1999:111)
ANTI-STIEGLER
Simondon coloca a questão da razão da transformação das sociedades (cf. IPC, p.63), e não responde por um avanço estrutural da técnica, mas pela existência de partes de natureza pré-individual associadas aos indivíduos que, colocados em comum durante a individuação específica do coletivo, fazem nascer o transindividual. (Combes 1999:112)
A HIPÓTESE SIMONDONIANA
hipótese simondoniana da existência de um potencial pré-indidvidual associado aos indivíduos, hipótese de seu comum pertencimento a uma dimensão ontológica que lhes precede (Combes 1999:113)
RETICULAÇÃO REDENTORA DO HILEMORFISMO
Simondon busca renovar o agir humano pelo engajamento na reticularidade dos conjuntos técnicos conectados. Nessa reticularidade, com efeito, Simondon vê a possibilidade de escapar, enfim, ao hilemorfismo que caracteriza a fase do ser no mundo à qual ainda pertencemos, e na qual entramos ao romper a “ligação vital entre o homem e o mundo” que caracterizava “a unidade mágica primitiva” (MEOT, p.163). (Combes 1999:114)
[Simondon viu] no mundo técnico contemporâneo, enquanto realidade reticular, o meio a partir do qual se oferece a possibilidade de reconstruir uma relação ao mundo análoga à unidade mágica, relação que não era uma fusão do homem e do mundo, mas uma “reticulação do mundo em lugares privilegiados e em momentos privilegiados” tais que “todo o poder de agir do homem e toda a capacidade do mundo de influenciar o homem se concentram nesses lugares e nesses momentos” (MEOT, p.164). Para além da cisão hilemórfica do agir imposto pela era da ferramenta, o que interessa a Simondon não é reencontrar essa relação mágica com o mundo, definitivamente perdida para nós e caracterizada pela influência recíproca do homem e do mundo, na qual o homem podia “estabelecer com ele uma relação de amizade” (MEOT, p.166); mas, através da rede técnica contemporânea, vir a construir uma nova modalidade da relação, como relação transdutiva dos homens frente à natureza e relação transindividual dos homens entre si. (Combes 1999:115)
CONSCIÊNCIA TÉCNICA
A tarefa cultural de uma “tomada de consciência filosófica e nocional da realidade técnica” deve portanto ser superada numa prova existencial da qual todo ser humano deveria participar, aquela de “se situar particularmente na rede técnica” (MEOT, p.228), na qual cada um experimentaria participar de uma série de processos indissociavelmente humanos e maquínicos. (Combes 1999:116)
OBJETO TÉCNICO EM REDE
[Q]uando acionado conforme sua essência, isto é, não como uma mídia [moyen], ferramenta ou utensílio, mas como um sistema que funciona e que se inscreve numa rede de máquinas às quais ele está ligado, o objeto técnico se torna o lugar de uma nova relação com a natureza, não mais relação de utilização mediada pelo organismo do indivíduo humano, mas relação de acoplagem imediata do pensamento humano com a natureza. (Combes 1999:125)
RETICULAÇÃO TRANSINDIVIDUAL DESALIENANTE
É significativo que, no momento de concluir sua obra sobre a técnica, Simondon insiste sobre a necessária constituição de um modo transindividual de relação com a técnica para poder apreender os objetos técnicos naquilo que neles existe de pré-individual sedimentado. Mas isso se compreende sem dificuldade se for verdade que é apenas no seio do coletivo transindividual que se pode construir uma relação desalienada com os objetos técnicos, isto é, um uso de máquinas adequado à potência de amplificação da rede técnica contemporânea. (Combes 1999:127-8)
REDES TECNOÉTICAS
[O] que pode a tecnicidade como rede amplificadora ainda está por inventar. […] É mérito de Simondon haver visto que a técnica como rede já constitui um meio que condiciona o agir humano. Mesmo nesse meio, trata-se de inventar novas formas de fidelidade à natureza transdutiva dos seres, vivos ou não, e de novas modalidades transindividuais de amplificação do agir. (Combes 1999:128)