study note
O associacionismo da “física social” de Comte

O associacionismo da “física social” de Comte

COMTE, Autuste. 1978. Curso de filosofia positiva; Catecismo positivista. In: Os pensadores. (Trad.: Miguel Lemos) São Paulo: Abril Cultural. [1830-42, 1852]

FÍSICA SOCIAL
“Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintos, os relativos ao indivíduo e os concernentes à espécie, sobretudo quando esta é sociável. É principalmente em relação ao homem que esta distinção é fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complicada e mais particular do que a primeira, depende dela sem a influenciar. Daí duas grandes seções da física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, fundada na primeira. […] Em todos os fenômenos sociais observa-se, primeiramente, a influência das leis fisiológicas do indivíduo e, ademais, alguma coisa de particular que modifica seus efeitos e que provém da ação dos indivíduos uns sobre os outros, algo que se complica particularmente na espécie humana por causa da ação de cada geração sobre aquela que lhe segue. É, pois, evidente que, para estudar convenientemente os fenômenos sociais, é preciso partir de início do conhecimento aprofundado das leis relativas à vida individual. Por outro lado, essa subordinação necessária dos dois estudos não prescreve, de modo algum, como certos fisiologistas de primeira ordem foram levados a crer, a necessidade de ver na física social simples apêndice da fisiologia. A despeito de os fenômenos serem por certo homogêneos, não são idênticos, e a separação das duas ciências é duma importância verdadeiramente fundamental. Pois seria impossível tratar o estudo coletivo da espécie como pura dedução do estudo do indivíduo, porquanto as condições sociais, que modificam a ação das leis fisiológicas, constituem precisamente a consideração mais essencial. Assim, a física social deve fundar-se num corpo de observações diretas que lhe seja próprio, atentando, como convém, para sua íntima relação necessária com a fisiologia propriamente dita. […] Como resultado dessa discussão, a filosofia positiva se encontra, pois, naturalmente dividida em cinco ciências fundamentais, cuja sucessão é determinada pela subordinação necessária e invariável, fundada, independentemente de toda opinião hipotética, na simples comparação aprofundada dos fenômenos correspondentes: a astronomia, a física, a química, a fisiologia e, enfim, a física social. A primeira considera os fenômenos mais gerais, mais simples, mas abstratos e mais afastados da humanidade, e que influenciam todos os outros sem serem influenciados por estes. Os fenômenos considerados pela última são, ao contrário, os mais particulares, mais complicados, mais concretos e mais diretamente interessantes para o homem; dependem, mais ou menos, de todos os precedentes, sem exercer sobre eles influência alguma. Entre esses extremos, os graus de especialidade, de complicação e de personalidade dos fenômenos vão gradualmente aumentando, assim como sua dependência sucessiva. Tal é a íntima relação geral que a verdadeira observação filosófica, convenientemente empregada, ao contrário de vãs distinções arbitrárias, nos conduz a estabelecer entre as diversas ciências fundamentais.” (Comte 1978[Curso de Filosofia Positiva]:31-2)

AS TRÊS ASSOCIAÇÕES HUMANAS (família-amor; cidade-progresso;
igreja-ordem)

“Todo organismo coletivo oferece necessariamente os diversos elementos essenciais que acabo de vos explicar [i.e.: amor, progresso e ordem]. Mas eles se acham aí mais ou menos pronunciados, e, portanto, distintos, segundo a natureza e a extensão da sociedade correspondente. O predomínio respectivo de cada um deles conduz a reconhecer três associações diferentes, que cumpre classificar segundo a intimidade decrescente e a extensão crescente delas. A do meio assenta na precedente e serve de base à seguinte. Única fundada naturalmente no amor, a Família é a sociedade mais íntima e mais restrita, elemento necessário das outras duas. A atividade constitui em seguida a Cidade ou Pátria, em que o laço resulta sobretudo de uma cooperação habitual, que não poderia ser assaz sentida se esta associação política combinasse um número excessivo de associações domésticas. Vem, enfim, a Igreja, a qual, ligando-nos essencialmente pela fé, é a única que comporta uma verdadeira universalidade, que a religião positiva há de necessariamente realizar. Estas três sociedades humanas têm por centros respectivos a mulher, o patriciado e o sacerdócio. […] A família de que cada qual provém pertence a uma cidade qualquer, e mesmo a uma certa igreja. Mas este último laço sendo mais fraco comporta mais variações, se bem que não sejam nunca arbitrárias. Quando ele se torna bastante consistente, é o único que fornece o meio de reduzir convenientemente a cidade, em torno da qual as existências se concentram ordinariamente, em virtude do predomínio natural da atividade sobre a inteligência e mesmo sobre o sentimento. De fato, o estado social não pode ser verdadeiramente duradouro senão conciliando assaz a independência com o concurso, condições igualmente inerentes à verdadeira noção da Humanidade. Ora, este acordo necessário impõe às sociedades políticas limites de extensão muito inferiores aos que hoje prevalecem. […] Na Idade Média, a separação esboçada entre a associação religiosa e a associação civil já permitiu substituir a livre incorporação dos povos ocidentais à incorporação forçada que lhes proporcionara a princípio o domínio romano. O Ocidente ofereceu, assim, durante muitos séculos, o admirável espetáculo de uma união sempre voluntária, fundada unicamente numa fé comum e mantida por um mesmo sacerdócio, entre nações cujos diversos governos tinham toda a devida independência. Porém esse grande resultado político não podia sobreviver à emancipação prematura de um poder que só à religião positiva compete convenientemente instituir e libertar irrevogavelmente. O declínio necessário do catolicismo restabeleceu a concentração temporal, que se tornou então indispensável para impedir a inteira deslocação política a que se era impelido pela dissolução crescente dos laços religiosos. É assim que, apesar dos costumes da Idade Média, cujos vestígios são ainda sensíveis, os ocidentais deixaram que por toda parte se formassem Estados vastos demais. […] Os motivos políticos dessa extensão exorbitante tendo já cessado suficientemente, começam-se a sentir, mesmo na França, os perigos radicais, e também o próximo termo, de semelhante anomalia. Mas a religião positiva reduzirá em breve estas monstruosas associações à extensão normal que dispensará o emprego da violência para manter a união temporal entre nações suscetíveis apenas de laços espirituais. Tal será a próxima aplicação do princípio estático que erige em órgão político do Grande Ser a simples cidade, completada pelas populações menos condensadas que a ela estiverem ligadas livremente. O sentimento patriótico, hoje tão vago e tão fraco por causa de sua difusão exagerada, poderá desde então desenvolver dignamente toda a energia que comporta esta concentração cívica. Mas a união habitual das grandes cidades se tornará mais real e eficaz tomando o caráter normal de um concurso voluntário. A fé positiva fará convenientemente sentir a solidariedade e também a continuidade, que devem finalmente reinar entre todas as regiões quaisquer do planeta humano.” (Comte 1978[Catecismo Positivista]:239)

OS DOIS PODERES (político e religioso)
“[C]onsideremos estaticamente o regime humano. Estudai nele a existência em vez do movimento, e chegareis logo à divisão dos dois poderes, como base universal da ordem social, partindo unicamente do princípio da cooperação, sobre o qual Aristóteles fundou a verdadeira teoria da associação cívica oriunda do concurso das famílias. Com efeito, cada servidor da Humanidade deve sempre ser apreciado sob dois aspectos distintos, embora simultâneos, primeiro, em relação ao seu ofício especial, depois, quanto à harmonia geral. O primeiro dever de todo órgão social consiste, sem dúvida, em bem preencher sua própria função. Mas a boa ordem exige também que cada um assista, tanto quanto possível, à realização dos outros ofícios quaisquer. Semelhante atributo torna-se mesmo o caráter principal do organismo coletivo, em virtude da natureza inteligente e livre de todos os seus agentes. […] Ora, existe espontaneamente uma oposição cada vez mais pronunciada entre estes dois ofícios, um especial, outro geral, de cada funcionário humano. Porquanto, o primeiro, particularizando-se mais à medida que a cooperação se desenvolve, suscita disposições intelectuais, e mesmo tendências morais, que o afastam cada vez mais de uma apreciação de conjunto, que também se vai tornando cada vez mais difícil. Tal é o verdadeiro ponto de vista elementar da teoria geral do governo, primeiro temporal, depois espiritual. […] Como nenhuma função, mesmo vital, e sobretudo social, pode ser bem preenchida senão por meio de um órgão próprio, o mínimo concurso humano exige, pois, uma força especialmente destinada a chamar de novo às vistas e aos sentimentos de conjunto agentes que tendem sempre a desviar-se de tais condições. Ela deve sem cessar conter as suas divergências e desenvolver as suas convergências. Por outro lado, este poder indispensável surge naturalmente das desigualdades que sempre suscita a evolução humana. […] Apesar da íntima simpatia que constitui a simples associação doméstica, mesmo reduzida ao par fundamental, não está ela nunca isenta de semelhante necessidade. É aí que se pode apreciar melhor este grande axioma: Não existe sociedade sem governo. […] Na ordem cívica, cada concurso de famílias para um fim determinado faz em breve surgir um chefe prático, cuja autoridade se acha espontaneamente limitada pelo conjunto das operações que ele pode realmente dirigir, quer pela sua própria aptidão, quer, sobretudo, em virtude de seus capitais. É aí que reside o verdadeiro poder temporal, igualmente capaz de impulsionar e de reter, conforme as necessidades. Todo poder mais vasto dimana necessariamente de uma fonte espiritual. Os diferentes chefes práticos tendem, contudo, a se coordenar entre si, mediante uma hierarquia nascida das relações naturais de seus diversos trabalhos. Este concurso espontâneo institui, pois, uma espécie de governo mais geral, porém sempre reduzido ao seu poder material, mais adequado a resistir que a dirigir. Seus diferentes membros são ordinariamente incapazes de abarcar o conjunto correspondente, apesar da competência de cada um deles em relação a um dos sistemas parciais. […] A simples solidariedade bastaria, pois, quando um pouco extensa, para indicar a insuficiência do poder prático e a necessidade de uma autoridade teórica que, privando-se de toda ação especial, faça prevalecer constantemente a harmonia geral. A continuidade, porém, da qual depende cada vez mais a ordem humana, torna essa necessidade plenamente irrecusável. Esses poderes empíricos, aspirando a dirigir o presente, não conhecem o passado que o domina, nem o futuro que ele prepara. Por isso a intervenção deles permanece cega e amiúde perturbadora, quando não a subordinam aos conselhos teóricos. Ao mesmo tempo, a influência sacerdotal lhes é indispensável, como a única capaz de consagrar assaz seu ascendente material quase sempre exposto a invejosas contestações. Cada consagração consiste em representar o poder correspondente como o ministro de um poder superior geralmente respeitado: Deus sob o regime provisório, a Humanidade na ordem definitiva. Ora, isto supõe sempre, mas sobretudo em relação a este estado final, que o presente se prende dignamente ao passado e ao futuro. O sacerdócio, único que pode instituir esta dupla ligação, torna-se, assim, o consagrador necessário de todos os poderes humanos, sem precisar ele próprio de nenhuma consagração estranha, pois é o órgão direto da suprema autoridade. […] Eis aí de onde procede este segundo axioma: Nenhuma sociedade se pode desenvolver e conservar sem um sacerdócio qualquer. Semelhantemente indispensável a todos para a educação e para o conselho, só este poder teórico é capaz de consagrar os governantes e de proteger os governados. Ele constitui o moderador normal da vida pública, como a mulher o da vida privada, conquanto estas duas existências exijam, aliás, o concurso contínuo da influência moral com o poder intelectual. Podeis resumir o conjunto das atribuições sociais do sacerdócio qualificando-o de Juiz, segundo a expressão bíblica, porquanto seu tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador se efetua sempre julgando, isto é, mediante uma apreciação respeitada. […] Qualificando de espiritual o poder teórico, faz-se assaz sentir que o outro é puramente material. Por este modo fica indiretamente assinalada a melhor comparação social que esses dois poderes comportam, a qual consiste em considerá-los como disciplinando, um as vontades, e o outro os atos. Reciprocamente, qualificar de temporal o poder prático é recordar assaz a eternidade que caracteriza o poder teórico. Isto posto, podemos definir suficientemente seus domínios respectivos: de um lado o presente, do outro o passado e o futuro; um institui especialmente a solidariedade, o outro a continuidade; a um pertence sobretudo a vida objetiva, ao outro a vida subjetiva. Ora, estes dois atributos essenciais, simultaneamente indicados pela própria discordância dos nomes usados, concorrem para lembrar também a última oposição entre os dois poderes humanos, quanto à sua extensão respectiva. De fato, a potência teórica, já como espiritual, já como eterna, comporta espontaneamente uma inteira universalidade, ao passo que a autoridade prática, por ser material e temporal, permanece necessariamente local. Deste contraste final resulta a separação das duas, logo que ele se desenvolve assaz.” (Comte 1978[Catecismo Positivista]:254-56)

PROGRESSO e RELIGIÃO
O domínio prático da religião limita-se […] às disposições verdadeiramente universais, sem penetrar no preenchimento especial de cada ofício. Ela deve, contudo, apreciar exatamente as diversas funções sociais, mas só para lhes prescrever as regras adequadas a conservar e desenvolver a harmonia geral. Tudo o que se refere à execução particular pertence aos diferentes modos ou graus do governo propriamente dito, quer privado, quer público, e nunca ao sacerdócio. […] A fim de precisar melhor esta distinção fundamental, cumpre agora estender ao progresso a divisão geral que o estudo do dogma vos tornou familiar em relação à ordem. Pois que decompusemos primeiro a ordem universal em ordem exterior e ordem humana, devemos apreciar semelhantemente os aperfeiçoamentos que ela comporta. Distinguem-se, assim, duas espécies de progresso, um exterior, outro humano. Posto que ambos se refiram finalmente a nós mesmos, só o último diz respeito à nossa própria natureza, e o primeiro limita-se à nossa situação, que ele melhora reagindo sobre todas as existências capazes de afetar a nossa. É por isso que esse progresso exterior é habitualmente qualificado de material, se bem que se estenda à ordem vital propriamente dita, mas apenas em relação às espécies que nos servem de provisões ou de instrumentos. O ponto de vista do progresso sendo necessariamente mais subjetivo que o da ordem, a uniformidade da linguagem nem sempre corresponde, nele, à identidade das noções. […] Esta distinção basta para introduzir convenientemente a divisão fundamental entre os domínios práticos do governo e do sacerdócio. Concebendo todas as forças sociais como igualmente votadas ao aperfeiçoamento universal, é mister, assim, distingui-las conforme elas melhoram a ordem exterior ou a ordem humana. Tal é a melhor origem elementar da separação normal entre a ação temporal e a ação espiritual. A dignidade superior desta resulta, então, da preponderância natural do progresso correspondente. Assim, o domínio prático da religião consiste em aperfeiçoar a ordem humana, primeiro física, depois intelectual, enfim, e sobretudo moral. Apesar da diversidade destes três aspectos, eles devem sempre ficar inseparáveis, em virtude de sua íntima conexão, que cumpre respeitar ainda mais para a ação que para a especulação. Quanto à ordem exterior, seu melhoramento direto e especial não compete à religião: constitui o domínio próprio da política ou da indústria. Todavia, a religião acha aí indiretamente uma participação importante, porém geral, pela grande influência que o estado do agente humano exerce necessariamente sobre os resultados efetivos de sua ação qualquer. Em toda operação prática, o bom êxito exige em primeiro lugar que cada cooperador seja honesto, inteligente e corajoso. Mas é só neste sentido que a religião tem sempre uma parte na constituição fundamental de cada indústria especial.” (Comte 1978[Catecismo Positivista]:253)

Tags :