Novum Organum (Bacon 1620)
BACON, Francis. 1620. Novum Organum; ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. Tradução usada: José Aluysio Reis de Andrade.
MÉTODO (uma dialética com lastro instrumental)
Nosso método […] é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se aplicar. Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que também divisaram os que tanto concederam à dialética. Tornaram também manifesta a necessidade de escoras para o intelecto, pois colocaram sob suspeita o seu processo natural e o seu movimento espontâneo. Mas tal remédio vinha tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente ocupada pelos usos do convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais vã idolatria. Pois a dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em nada modificando o andamento das coisas, mais serviu para firmar os erros que descerrar a verdade.
ANTECIPAÇÃO DA MENTE (dedução argumetativa humana) x INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA (indução objetiva divina)
Que haja, pois talvez seja propício para ambas as partes, duas fontes de geração e de propagação de doutrinas. Que haja igualmente duas famílias de cultores da reflexão e da filosofia, com laços de parentesco entre si, mas de modo algum inimigas ou alheia uma da outra, antes pelo contrário coligadas. Que haja, finalmente, dois métodos, um destinado ao cultivo das ciências e outro destinado à descoberta científica. Aos que preferem o primeiro caminho, seja por impaciência, por injunções da vida civil, seja pela insegurança de suas mentes em compreender e abarcar a outra via (este será, de longe, o caso da maior parte dos homens), a eles auguramos sejam bem sucedidos no que escolheram e consigam alcançar aquilo que buscam. Mas aqueles dentre os mortais, mais animados e interessados, não no uso presente das descobertas já feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados, não com a vitória sobre os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, que se juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciências, por tantos palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios. E, para sermos melhor atendidos e para maior familiaridade, queremos adiantar o sentido dos termos empregados. Chamaremos ao primeiro método ou caminho de Antecipação da Mente e ao segundo de Interpretação da Natureza.
XIX – Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas mais gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípios e de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda não instaurado.
XXII – Tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e terminam nas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso aquilo em que discrepam. Enquanto que uma perpassa na carreira pela experiência e pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como cumpre. Aquela, desde o início, estabelece certas generalizações abstratas e inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas coisas que são realmente as mais comuns na natureza.
XXIV – De modo algum se pode admitir que os axiomas constituídos pela argumentação valham para a descoberta de novas verdades, pois a profundidade da natureza supera de muito o alcance do argumento. Mas os axiomas reta e ordenadamente abstraídos dos fatos particulares, estes sim, facilmente indicam e designam novos fatos particulares e, por essa via, tornam ativas as ciências.
XXVI – Para efeito de explanação, chamamos à forma ordinária da razão humana voltar-se para o estudo da natureza de antecipações da natureza (por se tratar de intento temerário e prematuro). E à que procede da forma devida, a partir dos fatos, designamos por interpretação da natureza.
XXVII – As antecipações são fundamento satisfatório para o consenso, pois, se todos os homens se tornassem da mesma forma insanos, poderiam razoavelmente entender-se entre si.
XXVIII – Ainda mais, as antecipações são de muito mais valia para lograr o nosso assentimento, que as interpretações; pois, sendo coligidas a partir de poucas instâncias e destas as que mais familiarmente ocorrem, desde logo empolgam o intelecto e enfunam a fantasia; enquanto que as interpretações, pelo contrário, sendo coligidas a partir de múltiplos fatos, dispersos e distanciados, não podem, de súbito, tocar o intelecto, de tal modo que, à opinião comum, podem parecer quase tão duras e dissonantes quanto os mistérios da fé.
XXIX – Nas ciências que se fundam nas opiniões e nas convenções é bom o uso das antecipações e da dialética, já que se trata de submeter o assentimento e não as coisas.
XXXVI – Resta-nos um único e simples método, para alcançar os nossos intentos: levar os homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem a habituar-se ao trato direto das coisas.
XCVIII – Os fundamentos da experiência — já que a ela sempre retomamos — até agora ou foram nulos ou foram muito inseguros. Até agora não se buscaram nem se recolheram coleções de fatos particulares, em número, gênero ou em exatidão, capazes de informar de algum modo o intelecto. Mas, ao contrário, os doutos, homens indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua filosofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas de experiência, a que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho. Dessa forma, introduziu-se na filosofia, no que respeita à experiência, a mesma prática de um reino ou Estado que cuidasse de seus negócios, não à base de informações de representantes ou núncios fidedignos, mas dos rumores ou mexericos de seus cidadãos.
“PROCURE FAZER USO DE SEU PRÓPRIO JUÍZO”
Procuramos cercar nossas reflexões dos maiores cuidados, não apenas para que fossem verdadeiras, mas também para que não se apresentassem de forma incômoda e árida ao espírito dos homens, usualmente tão atulhado de múltiplas formas de fantasia. Em contrapartida, solicitamos dos homens, sobretudo em se tratando de uma tão grandiosa restauração do saber e da ciência, que todo aquele que se dispuser a formar ou emitir opiniões a respeito do nosso trabalho, quer partindo de seus próprios recursos, da turba de autoridades, quer por meio de demonstrações (que adquiriram agora a força das leis civis), não se disponha a fazê-lo de passagem e de maneira leviana. Mas que, antes, se inteire bem do nosso tema; a seguir, procure acompanhar tudo o que descrevemos e tudo a que recorremos; procure habituar-se à complexidade das coisas, tal como é revelada pela experiência; procure, enfim, eliminar, com serenidade e paciência, os hábitos pervertidos, já profundamente arraigados na mente. Aí então, tendo começado o pleno domínio de si mesmo, querendo, procure fazer uso de seu próprio juízo.
XCVII – Até agora ninguém surgiu dotado de mente tão tenaz e rigorosa que haja decidido, e a si mesmo imposto, livrar-se das teorias e noções comuns e aplicar, integralmente, o intelecto, assim purificado e reequilibrado, aos fatos particulares. Pois a nossa razão humana é constituída de uma farragem e massa de coisas, procedentes algumas de muita credulidade, e outras do acaso e também de noções pueris, que recebemos desde o início.
OBEDECER A NATUREZA PARA DOMINÁ-LA
I – O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais.
III – Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece. E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática.
IV – No trabalho da natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria natureza, em si mesma.
XCVIII – […] [D]a mesma maneira que na vida política o caráter de cada um, sua secreta disposição de ânimo e sentimentos melhor se patenteiam em ocasiões de perturbação que em outras, assim também os segredos da natureza melhor se revelam quando esta é submetida aos assaltos das artes que quando deixada no seu curso natural.
CXXIX – […] A esta altura, não seria impróprio distinguirem-se três gêneros ou graus de ambição dos homens. O primeiro é o dos que aspiram ampliar seu próprio poder em sua pátria, gênero vulgar a aviltado; o segundo é o dos que ambicionam estender o poder e o domínio de sua pátria para todo o gênero humano, gênero sem dúvida mais digno, mas não menos cúpido. Mas se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio do gênero humano sobre o universo, a sua ambição (se assim pode ser chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre as coisas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe.
ARRIMOS PARA O INTELECTO (instrumentos de registro e medida; tabelas)
II – Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o intelecto e o precavêm.
CI – Todavia, mesmo quando esteja pronto e preparado o material de história natural e de experiência, na quantidade requerida para a obra do intelecto, ou seja, para a obra da filosofia, nem assim o intelecto estará em condições de trabalhar o referido material espontaneamente e apenas com o auxílio da memória. Seria o mesmo que se tentasse aprender de memória e reter exatamente todos os cálculos de uma tábua astronômica. E até agora, em matéria de invenção, tem sido mais importante o papel da meditação que o da escrita, e a experiência não é ainda literata. Apesar disso, nenhuma forma de invenção é conclusiva senão por escrito. E é de se esperar melhores frutos quando a experiência literata for de uso corrente.
CII – Além disso, sendo tão grande o número dos fatos particulares, quase um exército, e achando-se de tal modo esparsos e difusos que chegam a desagregar e confundir o intelecto, não é de se esperar boa coisa das escaramuças, dos ligeiros movimentos e incursões do intelecto, a não ser que, organizando e coordenando todos os fatos relacionados a um objeto, se utilize de tabelas de invenção idôneas e bem dispostas e como que vivas. Tais tabelas servirão à mente como auxiliares preparados e ordenados.
CXXII – […] [S]e nos acusam de arrogantes, cumpre-nos observar que isso seria verdadeiro de alguém que pretendesse traçar uma linha reta ou um círculo, melhor que algum outro, servindo-se apenas da segurança das mãos e do bom golpe de vista. No caso, haveria uma comparação de capacidade. Mas se alguém afirma poder traçar uma linha mais reta e um círculo mais perfeito servindo-se da régua e do compasso, em comparação a alguém que faça uso apenas das mãos e da vista, esse com certeza não seria um jactancioso. O que ora dizemos não se refere somente aos nossos primeiros esforços e tentativas, mas também aos dos que se seguiram com os mesmos propósitos. Pois o nosso método de descoberta das ciências quase que iguala os engenhos e não deixa muita margem à excelência individual, pois tudo submete a regras rígidas e demonstrações. Eis por que, como já o dissemos muitas vezes, a nossa obra deve ser atribuída mais à sorte que à habilidade, e é mais parto do tempo que do talento. Pois parece não haver dúvidas de que uma espécie de acaso intervém tanto no pensamento dos homens quanto nas obras e nos fatos.
DEUS = NATUREZA = COISAS
XXIII – Não é pequena a diferença existente entre os ídolos da mente humana e as idéias da mente divina, ou seja, entre opiniões inúteis e as verdadeiras marcas e impressões gravadas por Deus nas criaturas. tais como de fato se encontram.
CXXIV – […] Efetivamente construímos no intelecto humano um modelo verdadeiro do mundo, tal qual foi descoberto e não segundo o capricho da razão de fulano ou beltrano. Porém, isso não é possível levar a efeito, sem uma prévia e diligentíssima dissecção e anatomia do mundo. Por isso, decidimos correr com todas essas imagens ineptas e simiescas que a fantasia humana infundiu nos vários sistemas filosóficos. Saibam os homens como já antes dissemos a imensa distância que separa os ídolos da mente humana das idéias da mente divina. Aqueles, de fato, nada mais são que abstrações arbitrárias; estas, ao contrário, são as verdadeiras marcas do Criador sobre as criaturas, gravadas e determinadas sobre a matéria, através de linhas exatas e delicadas. Por conseguinte, as coisas em si mesmas, neste gênero, são verdade e utilidade, e as obras devem ser estimadas mais como garantia da verdade que pelas comodidades que propiciam à vida humana.
ÍDOLOS: da tribo (tradições); da caverna (subjetivos); do foro (políticos); e do teatro (filosóficos)
XXXIX – São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ídolos da Tribo; Ídolos da Caverna; Ídolos do Foro e Ídolos do Teatro.
XL – A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos.
XLI Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.
XLII – Os ídolos da caverna são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um — além das aberrações próprias da natureza humana em geral — tem uma caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal forma que o espírito humano — tal como se acha disposto em cada um — é coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso. Por isso, bem proclamou Heráclito que os homens buscam em seus pequenos mundos e não no grande ou universal.
XLIII – Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens. Com efeito, os homens se associam graças ao discurso, e as palavras são cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta, bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios, restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias.
XLIV – Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração. São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais, não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência.
PARA UMA NATUREZA DIVINA, UM CIENTISTA INFANTIL (tabula rasa)
LXVIII – Já falamos de todas as espécies de ídolos e de seus aparatos. Por decisão solene e inquebrantável todos devem ser abandonados e abjurados. O intelecto deve ser liberado e expurgado de todos eles, de tal modo que o acesso ao reino do homem, que repousa sobre as ciências, possa parecer-se ao acesso ao reino dos céus, ao qual não se permite entrar senão sob a figura de criança.
EXPERIMENTOS LUCÍFEROS (sem utilidade prática além do aumento das luzes do conhecimento) x EXPERIMENTOS FRUTÍFEROS (que resultam em efeitos práticos para além do mero avanço do conhecimento)
XCIX – Por sua vez, mesmo em meio à abundância dos experimentos mecânicos, há grande escassez dos que mais contribuem e concorrem para informação do intelecto. De fato, o artesão, despreocupado totalmente da busca da verdade, só está atento e apenas estende as mãos para o que diretamente serve a sua obra particular. Por isso, a esperança de um ulterior progresso das ciências estará bem fundamentada quando se recolherem e reunirem na história natural muitos experimentos que em si não encerram qualquer utilidade, mas que são necessários na descoberta das causas e dos axiomas. A esses experimentos costumamos designar por lucíferos, para diferenciá-los dos que chamamos de frutíferos. Aqueles experimentos têm, com efeito, admirável virtude ou condição: a de nunca falhar ou frustrar, pois não se dirigem à realização de qualquer obra, mas à revelação de alguma causa natural. Assim, qualquer que seja o caso, satisfazem esse intento e assim resolvem a questão.
O PARADOXO DA INVENÇÃO: antes dela, ela é inimaginável, e geralmente considerada impossível; depois dela, ela é desprezada como óbvia e evidente.
CIX – Pode-se também acrescentar como argumento de esperança o fato de que muitos dos inventos já logrados são de tal ordem que antes a ninguém foi dado sequer suspeitar da sua possibilidade. Eram, ao contrário, olhados como coisas impossíveis. E tal se deve a que os homens procuram adivinhar as coisas novas a exemplo das antigas e com a imaginação preconcebida e viciada. Mas essa é uma maneira de opinar sumamente falaciosa, pois a maioria das descobertas que derivam das fontes das coisas não flui pelos regatos costumeiros. Assim, por exemplo, se antes da invenção dos canhões alguém, baseado nos seus efeitos, os descrevesse: foi inventada uma máquina que pode, de grande distância, abalar e arrasar as mais poderosas fortificações, os homens então se poriam a cogitar das diferentes e múltiplas formas de se aumentar a força de suas máquinas bélicas pela combinação de pesos e rodas e dispositivos que tais, causadores de embates e impulsos. Mas a ninguém ocorreria, mesmo em imaginação ou fantasia, essa espécie de sopro violento e flamejante que se propaga e explode. A sua volta não divisavam nenhum exemplo de algo semelhante, a não ser o terremoto e o raio, que, como fenômenos naturais de grandes proporções, não imitáveis pelo homem, seriam desde logo rejeitados. Do mesmo modo, se antes da descoberta do fio da seda alguém houvesse falado: há uma espécie de fio para a confecção de vestes e alfaias que supera de longe em delicadeza e resistência e, ainda, em esplendor e suavidade, o linho e a lã, os homens logo se poriam a pensar em alguma planta chinesa, ou no pêlo muito delicado de algum animal, ou na pluma ou penugem das aves; mas ninguém haveria de imaginar o tecido de um pequeno verme tão abundante e que se renova todos os anos. Se alguém se referisse ao verme teria sido objeto de zombaria, como alguém que sonhasse com um novo tipo de teia de aranha. Do mesmo modo, se antes da invenção da bússola alguém houvesse falado ter sido inventado um instrumento com o qual se poderia captar e distinguir com exatidão os pontos cardeais do céu; os homens se teriam lançado, levados pela imaginação, a conjeturar a construção dos mais rebuscados instrumentos astronômicos, e pareceria de todo incrível que se pudesse inventar um instrumento com movimentos coincidentes com os dos céus, sem ser de substância celeste, mas apenas de pedra ou metal. Contudo, tais inventos e outros semelhantes permaneceram ignorados pelos homens por tantos séculos, e não foram descobertos pelas artes, mas graças ao acaso e oportunidade. Por outro lado, são de tal ordem (como já dissemos), são tão heterogêneos e tão distantes do que antes era conhecido que nenhuma noção anterior teria podido conduzir a eles. Desse modo, é de se esperar que há ainda recônditas, no seio da natureza, muitas coisas de grande utilidade, que não guardam qualquer espécie de relação ou paralelismo com as já conhecidas, mas que estão fora das rotas da imaginação. Até agora não foram descobertas. Mas não há dúvida de que no transcurso do tempo e no decorrer dos séculos virão à luz, do mesmo modo que as antes referidas. Mas, seguindo o caminho que estamos apontando, elas podem ser mostradas muito antes do tempo usual, podem ser antecipadas, de forma rápida, repentina e simultaneamente.
CX – […] [O]s homens não foram capazes de notar que, se é mais difícil a disposição dos caracteres tipográficos que escrever as letras à mão, aqueles, uma vez colocados, propiciam um número infinito de cópias, enquanto que as letras à mão só servem para uma escrita. Ou talvez não tenham sido capazes de notar que a tinta poderia ser espessada de forma a tingir sem escorrer (mormente quando se faz a impressão sobre as letras voltadas para cima). Eis por que por tantos séculos não se pôde contar com essa admirável invenção, tão propicia à propagação do saber. Mas a mente humana, no curso dos descobrimentos, tem estado tão desastrada e mal dirigida que primeiro desconfia de si mesma e depois se despreza. Primeiro lhe parece impossível certo invento; depois de realizado, considera incrível que os homens não o tenham feito há mais tempo. É isso mesmo que reforça os nossos motivos de esperança, pois subsiste ainda um sem-número de descobrimentos a serem feitos, que podem ser alcançados através da já mencionada experiência literata, não só para se descobrirem operações desconhecidas, como também para transferir, juntar e aplicar as já conhecidas.
CXXX – […] [N]ós, que consideramos a mente não meramente pelas faculdades que lhe são próprias, mas na sua conexão com as coisas, devemos presumir que a arte da invenção robustecer-se-á com as próprias descobertas.