Comte e progresso em Durkheim (2007)
PROGRESSO HUMANO é IDEOLOGIA (pois não existe humanidade ou natureza humana-psicológica, apenas sociedades particulares ou espécies sociais)
[A]té o presente, a sociologia tratou mais ou menos exclusivamente não de coisas, mas de conceitos. Comte, é verdade, proclamou que os fenômenos sociais são fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste modo, ele implicitamente reconheceu seu caráter de coisas, pois na natureza só existem coisas. Mas, quando, saindo dessas generalidades filosóficas, ele tenta aplicar seu princípio e extrair a ciência nele contida, são idéias que ele toma por objeto de estudo. Com efeito, o que faz a matéria principal de sua sociologia é o progresso da humanidade no tempo. Ele parte da idéia de que há uma evolução contínua do gênero humano que consiste numa realização sempre mais completa da natureza humana, e o problema que ele trata é descobrir a ordem dessa evolução. Ora, supondo que essa evolução exista, sua realidade só pode ser estabelecida uma vez feita a ciência; portanto, só se pode fazer dessa evolução o objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepção do espírito, não como uma coisa. E, de fato, é tão claro que se trata de uma representação inteiramente subjetiva que, na prática, esse progresso da humanidade não existe. O que existe, a única coisa dada à observação, são sociedades particulares que nascem, se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras. Se pelo menos as mais recentes continuassem as que as precederam, cada tipo superior poderia ser considerado como a simples repetição do tipo imediatamente inferior, com alguma coisa a mais; poder-se-ia, pois, alinhá-las umas depois das outras, por assim dizer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a série assim formada poderia ser vista como representativa da humanidade. Mas os fatos não se apresentam com essa extrema simplicidade. Um povo que substitui outro não é simplesmente um prolongamento deste último com algumas características novas; ele é outro, tem algumas propriedades a mais, outras a menos; constitui uma individualidade nova, e todas essas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem se fundir numa mesma série contínua, nem, sobretudo, numa série única. Pois a seqüência das sociedades não poderia ser figurada por uma linha geométrica; ela assemelha-se antes a uma árvore cujos ramos se orientam em sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou por desenvolvimento histórico a noção que dele possuía e que não difere muito da que faz o vulgo. Vista de longe, de fato, a história adquire bastante claramente esse aspecto serial e simples. Percebem-se apenas indivíduos que se sucedem uns aos outros e marcham todos numa mesma direção, porque têm uma mesma natureza. Aliás, como não se concebe que a evolução social possa ser outra coisa que não o desenvolvimento de uma idéia humana, parece natural defini-la pela idéia que dela fazem os homens. Ora, procedendo assim, não apenas se permanece na ideologia, mas se dá como objeto à sociologia um conceito que nada tem de propriamente sociológico. (Durkheim 2007:19-21)
Foi por ter desconhecido a existência de espécies sociais que Comte julgou poder representar o progresso das sociedades humanas como idêntico ao de um povo único “ao qual seriam idealmente referidas todas as modificações consecutivas observadas nas populações distintas”. É que, de fato, se existe apenas uma única espécie social, as sociedades particulares não podem diferir entre si a não ser em graus, conforme apresentem mais ou menos completamente os traços constitutivos dessa espécie única, conforme ‘exprimam’ mais ou menos perfeitamente a humanidade. Se, ao contrário, existem tipos sociais qualitativamente distintos uns dos outros, não se poderá fazer que eles se unam exatamente como as seções homogêneas de uma reta geométrica, por mais que os aproximemos. O desenvolvimento histórico perde deste modo a unidade ideal e sim- plista que lhe atribuíam; ele se fragmenta, por assim dizer, numa infinidade de pedaços que, por diferirem especificamente uns dos outros, não poderiam ligar-se de maneira contínua. A famosa metáfora de Pascal, retomada depois por Comte [ Comte (1978:69, 70) apresenta a “célebre fórmula filosófica de Pascal” como “a primeira noção racional de progresso humano”, consistindo em “fazer predominar de modo progressivo os eminentes atributos que distinguem a mais nobre humanidade da simples animalidade, a saber, de uma parte, a inteligência, de outra, a sociabilidade, faculdades naturalmente solidárias que mutuamente se servem de meio e de fim”. COMTE, Auguste. 1978. Catecismo positivista. 13a Conferência (Transição Peculiar ao Ocidente). (Trad.: Miguel Lemos) In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, pp.117-318. [1852]], mostra-se assim desprovida de verdade. […] Mas como fazer para constituir tais espécies? (Durkheim 2007:78-9)
“Uma vez, diz ele [Comte], que o fenômeno social, concebido em totalidade, não é, no fundo, senão um simples desenvolvimento da humanidade, sem nenhuma criação de faculdades quaisquer, tal como estabeleci anteriormente, todas as disposições efetivas que a observação sociológica puder sucessivamente revelar deverão portanto se verificar, pelo menos em germe, nesse tipo primordial que a biologia construiu de antemão para a sociologia.” [Cour de philos. pos., p.333.] É que o fato dominante da vida social, segundo ele, é o progresso e, por outro lado, o progresso depende de um fator exclusivamente psíquico, a saber, a tendência que leva o homem a desenvolver cada vez mais sua natureza. Os fatos sociais derivariam inclusive tão imediatamente da natureza humana que, nas primeiras fases da história, poderiam ser diretamente deduzidos sem necessidade de recorrer à observação [Cour de philos. pos., p.345.]. É verdade que, como Comte reconhece, é impossível aplicar esse método dedutivo aos períodos mais avançados da evolução. Mas essa impossibilidade é puramente prática. Deve-se ao fato de a distância entre o ponto de partida e o ponto de chegada ser muito grande para que o espírito humano, se resolvesse percorrê-la sem guia, não corresse o risco de se extraviar [Cour de philos. pos., p.346.]. Mas a relação entre as leis fundamentais da natureza humana e os resultados últimos do progresso não deixa de ser analítica. As formas mais complexas da civilização não são senão vida psíquica desenvolvida. Assim, ainda que as teorias da psicologia não sejam suficientes como premissas ao raciocínio sociológico, elas são a pedra de toque capaz de provar sozinha a validade das proposições indutivamente estabelecidas. “Nenhuma lei de sucessão social, diz Comte, indicada pelo método histórico, mesmo com toda a autoridade possível, deverá ser finalmente admitida senão após ter sido racionalmente ligada, de uma maneira direta ou indireta, mas sempre incontestável, à teoria positiva da natureza humana.” [Cour de philos. pos., p.335.] Portanto [para Comte] é sempre a psicologia que terá a última palavra. (Durkheim 2007:100-1)
EXPLICAR DE MANEIRA CAUSAL (i.e., um fato explicando o outro) O PROGRESSO
[S]e realmente a evolução social tivesse sua origem na constituição psicológica do homem, não se percebe como ela teria podido se produzir. Pois então seria preciso admitir que ela tem por motor algum impulso interior à natureza humana. Mas qual poderia ser esse impulso? Seria aquela espécie de instinto de que fala Comte e que leva o homem a realizar cada vez mais sua natureza? Mas isso é responder à pergunta com a pergunta e explicar o progresso por uma tendência inata ao progresso, verdadeira entidade metafísica cuja existência, de resto, nada demonstra; pois as espécies animais, inclusive as mais elevadas, de maneira nenhuma são movidas pela necessidade de progredir, e, mesmo entre as sociedades humanas, há muitas que se comprazem em permanecer indefinidamente estacionárias. Seria esse impulso, como parece acreditar Spencer, a necessidade de uma maior felicidade, que as formas cada vez mais complexas da civilização estariam destinadas a realizar sempre mais completamente? Seria preciso então estabelecer que a felicidade aumenta com a civilização, e expusemos alhures todas as dificuldades que essa hipótese levanta [DTS]. Não é tudo. Ainda que um ou outro desses dois postulados devesse ser admitido, nem por isso o desenvolvimento histórico se tornaria inteligível; pois a explicação resultante seria puramente finalista, e mostramos mais acima que os fatos sociais, assim como todos os fenômenos naturais, não são explicados pelo simples fato de se mostrar que eles servem a algum fim. Quando se provou que as organizações sociais cada vez mais elaboradas que se sucederam ao longo da história tiveram por efeito satisfazer sempre mais esta ou aquela de nossas inclinações fundamentais, nem por isso se fez compreender como elas se produziram. O fato de serem úteis não nos ensina o que as fez existir. Ainda que se explicasse como chegamos a imaginá-las, traçando como que o plano antecipado capaz de nos representar os serviços que poderíamos esperar delas – e o problema já é difícil –, o desejo do qual elas seriam assim o objeto não teria a virtude de tirá-las do nada. Em uma palavra, admitindo-se que essas inclinações são os meios necessários para atingir o objetivo perseguido, a questão permanece inteira: como, isto é, de que e através de que esses meios foram constituídos? (Durkheim 2007:110-2)
Não se costuma dizer que a história tem precisamente por objeto encadear os acontecimentos segundo sua ordem de sucessão? Mas é impossível conceber de que maneira o estado em que a civilização se encontra num momento dado poderia ser a causa determinante do estado seguinte. As etapas que a humanidade percorre sucessivamente não se engendram umas às outras. Compreende-se bem que os progressos realizados numa época determinada na ordem jurídica, econômica, política, etc, tornem possíveis novos progressos; mas em que os primeiros predeterminam os segundos? Eles são um ponto de partida que permite ir mais adiante; mas o que é que nos incita a ir mais adiante? Seria preciso admitir então uma tendência interna que leva a humanidade a ultrapassar constantemente os resultados adquiridos, seja para se realizar completamente, se- ja para aumentar sua felicidade, e o objeto da sociologia seria descobrir a ordem segundo a qual se desenvolveu essa tendência. Mas, sem voltar às dificuldades que semelhante hipótese implica, a lei que exprime esse desenvolvimento nada teria de causal. Uma relação de causalidade, com efeito, só pode se estabelecer entre dois fatos dados; ora, tal tendência, que se supõe ser a causa desse desenvolvimento, não é dada; é apenas postulada e construída pelo espírito com base nos efeitos que se atribuem a ela. Trata-se de uma espécie de faculdade motora que imaginamos sob o movimento, a fim de explicá-lo; mas a causa eficiente de um movimento só pode ser um outro movimento, não uma virtualidade desse gênero. Portanto, tudo o que obtemos experimentalmente, aqui, é uma série de mudanças entre as quais não existe vínculo causal. O estado antecendente não produz o conseqüente, mas a relação entre eles é exclusivamente cronológica. Assim, nessas condições, toda previsão científica é impossível. Podemos perfeitamente dizer como as coisas se sucederam até o presente, não em que ordem elas se sucederão daqui por diante, porque a causa de que supostamente dependem não é cientificamente determinada, nem determinável. Geralmente, é verdade, admite-se que a evolução prosseguirá no mesmo sentido do passado, mas isso em virtude de um simples postulado. Nada nos garante que os fatos realizados exprimam de maneira bastante completa a natureza dessa tendência para que se possa prejulgar o termo a que ela aspira com base naqueles pelos quais passou sucessivamente. Inclusive, por que seria retilínea a direção que ela segue e imprime? […] Eis aí, de fato, a razão de o número das relações causais, estabelecidas pelos sociólogos, ser tão restrito. Com poucas exceções, das quais Montesquieu é o mais ilustre exemplo, a antiga filosofia da história limitou-se unicamente a descobrir o sentido geral em que se orienta a humanidade, sem procurar ligar as fases dessa evolução a alguma condição concomitante. Por mais que Comte tenha prestado alguns grandes serviços à filosofia social, os termos nos quais ele coloca o problema sociológico não diferem dos precedentes. Assim, sua famosa lei dos três estados nada possui de uma relação de causalidade; ainda que fosse exata, ela não é e não pode ser mais que empírica. Trata-se de uma visão sumária da história transcorrida do gênero humano. É muito arbitrariamente que Comte considera o terceiro estado como o estado definitivo da humanidade. Quem nos diz que não surgirá outro no futuro? Do mesmo modo, a lei que domina a sociologia de Spencer não parece ser de outra natureza. Ainda que fosse verdade que tendemos atualmente a buscar nossa felicidade numa civilização industrial, nada assegura que, posteriormente, não venhamos a buscá-la em outra parte. Ora, o que faz a generalidade e a persistência desse método é que na maioria das vezes se viu no meio social um meio pelo qual o progresso se realiza, não a causa que o determina. (Durkhei 2007:118-20)
O PROGRESSO É INTERNO À CADA POVO (nascimento, juventude, vida adulta, declínio, morte), MAS COMPARÁVEL ENTRE DIFERENTES POVOS (desde que comparados na mesma idade)
[U]ma sociedade não cria completamente sua organização; ela a recebe pronta, em parte, das sociedades que a precederam. O que lhe é assim transmitido, no decorrer de sua história, não é o produto de um desenvolvimento seu, portanto não pode ser explicado se não sairmos dos limites da espécie de que ela faz parte. Somente os acréscimos que se juntam a esse fundo primitivo e o transformam podem ser tratados dessa maneira. Porém, quanto mais nos elevamos na escala social, tanto menor é a importância dos caracteres adquiridos por cada povo comparados aos caracteres transmitidos. Aliás, essa é a condição de todo progresso. Assim, elementos novos que introduzimos no direito doméstico, no direito de propriedade, na moral, desde o começo de nossa história, são relativamente pouco numerosos e pouco importantes, comparados aos que o passado nos legou. As novidades que se produzem não poderiam portanto ser compreendidas se primeiro não fossem estudados aqueles fenômenos mais fundamentais que são suas raízes, e estes só podem ser estudados com o auxílio de comparações muito mais extensas. Para poder explicar o estado atual da família, do casamento, da propriedade, etc., seria preciso conhecer quais são suas origens, quais os elementos simples que compõem essas instituições, e, sobre esses pontos, a história comparada das grandes sociedades européias não nos daria grandes esclarecimentos. É preciso remontar mais acima. […] Conseqüentemente, para explicar uma instituição social, pertencente a uma espécie determinada, iremos comparar as formas diferentes que ela apresenta não apenas nos povos dessa espécie, mas em todas as espécies anteriores. Trata-se, por exemplo, da organização doméstica? Constituiremos primeiramente o tipo mais rudimentar que possa ter existido, para em seguida acompanhar passo a passo a maneira como ele progressivamente se complicou. Esse método, que poderíamos chamar genético, efetuaria de uma só vez a análise e a síntese do fenômeno. Pois, por um lado, nos mostraria em estado dissociado os elementos que o compõem, pelo simples fato de nos mostrar esses elementos acrescentando-se sucessivamente uns aos outros; ao mesmo tempo, graças ao extenso campo de comparação, ele seria bem mais capaz de determinar as condições de que dependem a formação e associação desses mesmos elementos. Conseqüentemente, só se pode explicar um fato social de alguma complexidade se se acompanhar seu desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais. A sociologia comparada não é um ramo particular da sociologia; é a sociologia mesma, na medida em que ela deixa de ser puramente descritiva e aspira a explicar os fatos. […] No decorrer dessas comparações extensas, comete-se com freqüência um erro que falseia os resultados. Algumas vezes, para julgar em que sentido se desenvolvem os acontecimentos sociais, simplesmente se comparou o que se passa no declínio de cada espécie com o que se produz no começo da espécie seguinte. Procedendo deste modo, acreditou-se poder afirmar, por exemplo, que o enfraquecimento das crenças religiosas e de todo tradicionalismo nunca podia ser mais que um fenômeno passageiro da vida dos povos, porque ele só aparece no último período de sua existência para cessar assim que uma nova evolução recomeça. Mas, com semelhante método, corre-se o risco de tomar como marcha regular e necessária do progresso o que é efeito de uma causa muito diferente. De fato, o estado em que se encontra uma sociedade jovem não é simplesmente o prolongamento do estado em que haviam chegado no final de sua carreira as sociedades que ela substitui, mas provém em parte dessa própria juventude que impede que os produtos das experiências feitas pelos povos anteriores sejam todos imediatamente assimiláveis e utilizáveis. Assim, a criança recebe de seus pais faculdades e predisposições que só tardiamente entram em jogo em sua vida. Portanto é possível, para retomar o mesmo exemplo, que o retorno do tradicionalismo observado no começo de cada história seja devido, não ao fato de que um recuo do mesmo fenômeno só pode ser transitório, mas às condições especiais em que se acha colocada toda sociedade que começa. A comparação só pode ser demonstrativa se eliminamos esse fator da idade, que a perturba; para tanto, bastará considerar as sociedades comparadas no mesmo período de seu desenvolvimento. Assim, para saber em que sentido evolui um fenômeno social, iremos comparar o que ele é na juventude de cada espécie com aquilo em que se transforma na juventude da espécie seguinte, e, conforme apresentar, de uma etapa a outra, maior, menor ou igual intensidade, diremos que ele progride, recua ou se mantém. (Durkheim 2007:240-3)
DURKHEIM, Émile. 2007. As regras do método sociológico. (Trad.:Paulo Neves) São Paulo: Martins Fontes. [1994]