Pequena história da fotografia (ilustrada) (Benjamin 1994 [1931])
BENJAMIN, Walter. 1994. Pequena história da fotografia. (Trad. Sergio P. Rouanet) In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. [1931]
JULIA MARGARETH CAMERON e FÉLIX NADAR
A literatura recente deu-se conta da circunstância importante de que o apogeu da fotografia – a época de [Mary Ann] Hill[lier] [1847-1836] e [Julia Margareth] Cameron [1815-1879], de [Victor] Hugo [1802-1885] e [Félix] Nadar [1820-1910] – ocorreu no primeiro decênio da nova descoberta. Ora, este é o decênio que precede a sua industrialização. (Benjamin 1994:91)
Mary Ann Hillier foi criada de Julia Margaret Cameron, e assim posou para muitas de suas fotografias. Esta foto é de 1874.
O célebre escritor francês Victor Hugo foi fotografado por Félix Nadar em sua velhice e leito de morte. Esta foto foi tirada próximo de 1870.
LOUIS JACQUES DAGUERRE
Os clichês de Daguerre [as imagens produzidas pelos daguerreótipos] eram placas de prata, iodadas e expostas na camera obscura; elas precisavam ser manipuladas em vários sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz favorável, uma imagem cinza-pálida. Eram peças únicas […]. Não raro, eram guardadas em estojos, como jóias. (Benjamin 1994:93)
Imagem de daguerreótipo produzido por Louis Jacques Mandé Daguerre em 1837. Tida como “a primeira”.
DAVID OCTAVIUS HILL
David Octavius Hill, retratista famoso, compôs seu afresco sobre o primeiro sínodo geral da igreja escocesa, em 1843, a partir de uma série de fotografias. Ele próprio tirava as fotos. E foram esses modestos meios auxiliares, destinados ao uso do próprio artista, que transmitiram seu nome à história, ao passo que ele desapareceu como pintor. (Benjamin 1994:93)
Calótipo de David O. Hill e Robert Adamson, tirado ao redor de 1840.
Mas alguns estudos são mais úteis para introduzir a nova técnica que esses retratos: imagens humanas anônimas, e não retratos. A pintura já conhecia há muito rostos desse tipo. Se os quadros permaneciam no patrimônio da família, havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado. Porém depois de duas ou três gerações esse interesse desaparecia: os quadros valiam apenas como testemunho do talento artístico do seu autor. Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na “arte”. […] “E eu pergunto como o adorno desses cabelos / E desse olhar rodeia os seres de antigamente / Como essa boca aqui beijada em torno da qual o desejo / Se enrola, loucamente, como fumaça sem fogo…” (Benjamin 1994:93)
Two New Haven fish wives (David O. Hill e Robert Adamson 1843–5)
Newhaven Fishwives (David O. Hill e Robert Adamson 1843-7)
Mrs Grace Ramsay and 4 unknown women (David O. Hill e Robert Adamson 1845)
Muitas imagens de Hill foram produzidas no cemitério de Greyfriars, em Edimburgo. Nada caracteriza melhor esse período primitivo que a naturalidade com que os modelos aparecem nesse ambiente. Com efeito, segundo uma imagem de Hill, esse cemitério tem o aspeto de um interior, um local solado, rodeado por uma cerca, onde se erguem sepulturas, apoiadas em muros, num gramado, ocas como lareiras, nas quais em vez de chamas, existem epitáfios. Mas esse local não teria hamais provocado um efeito tão impressionante se sua escolha não tivesse obedecido a imperativos técnicos. A fraca sensibilidade luminosa das primeiras chapas exigia uma longa exposição ao ar livre. Isso por sua vez obrigava o fotógrafo a colocar o modelo num lugar tão retirado quanto possível, onde nada pudesse perturbar a concentração necessária ao trabalho. (Benjamin 1994:95-6)
Covenanter’s Tomb, Greyfriars Churchyard, Edinburgh (David O. Hill e Robert Adamson 1843-1847)
KARL DAUTHENDEY
Ou então descobrimos a imagem de Dauthendey, o fotógrafo, pai do poeta, no tempo de seu noivado com aquela mulher que ele um dia encontrou com os pulsos cortados, em seu quarto de Moscou, pouco depois do nascimento do seu sexto filho. Nessa foto, ele pode ser visto a seu lado e parece segurá-la; mas o olhar dela não o vê, está fixado em algo de distante e catastrófico. Depois de mergulharmos suficientemente fundo em imagens assim, percebemos que também aqui os extremos se tocam: a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado e seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás. (Benjamin 1994:94)
Foto de Karl Dauthendey com sua noiva Sra. Friedrich em 1957.
KARL BLOSSFELDT
A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que camina, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional. Características estruturais, tecidos celulares, com os quais operam a técnica e a medicina, tudo isso tem mais afinidades originais com a câmara que a paisagem impregnada de estados afetivos, ou o retrato que exprime a alma do seu modelo. Mas ao mesmo tempo a fotografia revela nesse material os aspectos fisionômicos, mundos de imagens habitando as coisas mais minúsculas, suficientemente ocultas e signifitcativas para encontrarem um refúgio nos senhos diurnos, e que agora, tornando-se grandes e formuláveis, mostram que a diferença entre a técnica e a magia é uma variável totalmente histórica. é assim que, em suas surpreendentes fotografias de plantas, Blossfeldt mostrou no equisseto as formas mais antigas das colunas, no feto arborescente a mitra episcopal, nos brotos de castanheiras e aceráceas, aumentadas dez vezes, mastros totêmicos, no cardo um edifício gótico. (Benjamin 1994:94-5)
Urformen der kunst (Karl Blosfeldt 1928). As “formas das mais antigas colunas”?
Urformen der kunst (Karl Blosfeldt 1928). “Mitra episcopal”?
Urformen der kunst (Karl Blosfeldt 1928). “Mastros totêmicos”?
Urformen der kunst (Karl Blosfeldt 1928). Um “edifício gótico”?
O CASACO DE SCHELLING
Tudo nessas primeiras imagens era organizado para durar […] [.] [A]s próprias dobras de um vestuário, nessas imagens, duram mais tempo. Observe-se o casado de Schelling, na foto que dele se preservou. Com toda certeza, esse casaco se tornou tão importante quanto o filósofo: as formas que ele assumiu no corpo do seu próprietário não são menos valiosas que as rugas no seu rosto. (Benjamin 1994:96)
Wilhelm Joseph von Scheiling (1850)
GERAÇÃO DE TRANSIÇÃO
Essa geração de transição só desapareceu gradualmente. Uma bênção bíblica parece ter favorecido esses primeiros fotógrafos: os [Félix] Nadar, os [Carl Ferdinand] Stelzner, os [Pierre-Louis] Pierson, os [Hippolyte] Bayard, chegaram todos aos noventa ou cem anos. (Benjamin 1994:97)
ÁLBUM DE FAMÍLIA
Foi nessa época que começaram a surgir os álbuns fotográficos. Eles podiam ser encontrados nos lugares mais glaciais da casa, em consoles ou guéridons, na sala de visitas – grandes volumes encadernados em couro, com horríveis fechos de metal, e as páginas com margens douradas, com a espessura de um dedo, nas quais apareciam figuras grotescamente vestidas ou cobertas de rendas: o tio Alexandre e a tia Rika, Gertrudes quando pequena, papai no primeiro semestre da Faculdade e, para cúmulo da vergonha, nós mesmos, com uma fantasia alpina, cantando à tirolesa, agitando o chapéu contra neves pintadas (Benjamin 1994:97-8)
Benjamin e seu irmão numa foto de 1902.
Foi nessa época que apareceram aqueles ateliês com seus cortinados e palmeiras, tapeçarias e cavaletes, mescla ambígua de execução e representação, câmara de torturas e sala do trono, que nos é evocada, de modo tão comovente, por um retrato infantil de Kafka. O menino de cerca de seis anos é representado numa espécie de paisagem de jardim de inverno, vestido com uma roupa de criança, muito apertada, quase humilhante, sobrecarregada com rendas. No fundo, erguem-se palmeiras imóveis. E, como para tornar esse acolchoado ambiente tropical ainda mais abafado e sufocante, o modelo segura na mão esquerda um chapéu extraordinariamente grande, com largas abas, do tipo usado pelos espanhóis. O menino teria desaparecido nesse quadro se seus olhos incomensuravelmente tristes não dominassem essa paisagem feita sob medida para eles. (Benjamin 1994:98)
Franz Kafka em 1888.
EUGÈNE ATGET
Atget foi um ator que retirou a máscara, descontente com sua profissão, e tentou, igualmente, desmascarar a realidade. Viveu em Paris, pobre e desconhecido, desfazia-se de suas fotografias doando-as a amadores tão excêntricos como ele, e morreu há pouco tempo, deixando uma obra de mais de quatro mil imagens. […] [A]s fotos parisienses de Atget são as precursoras da fotografia surrealista, a vanguarda do único destacamento verdadeiramente expressivo que o surrealismo conseguiu pôr em marcha. Foi o primeiro a desinfetar a atmosfera sufocante difundida pela fotografia convencional, especializada em retratos, durante e época da decadência. Ele saneia essa atmosfera, purifica-a: começa a libertar o objeto da sua aura, nisso consistindo o mérito mais incontestável da moderna escola fotográfica. […] Ele buscava as coisas perdidas e transviadas, e, por isso, tais imagens se voltam contra a ressonância exótica, majestosa, romântica, dos nomes de cidades; elas sugam a aura da realidade como uma bomba suga a água de um navio que afunda. […] Quase sempre Atget passou ao largo das “grandes vistas e dos lugares característicos”, mas não negligenciou uma grande fila de fôrmas de sapateiro, nem os pátios de Paris, onde da manhã à noite se enfileiram carrinhos de mão, nem as mesas com so pratos sujos ainda não retirados, como existem aos milhares, na mesma hora, nem no bordel da rua… no.5, algarismo que aparece, em grande formato, em quatro diferentes locais da fachada. Mas curiosamente quase todas essas imagens são vazias. Vazia a Porte d’Arcueil nas fortificações, vazias as escadas faustosas, vazios os pátios, vazios os terraços dos cafés, vazia, como convém, a Place du Te[a]tre. Esses lugares não são solitários, e sim privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou moradores. Nessas obras, a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a seu mundo ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores. (Benjamin 1994:100-2)
Old shoes (Eugène Atget 1877-1927)
Port d’Arcueil (Eugène Atget)
Place [du] Théâtre Français (Eugène Atget 1926)
O NÃO-LEGADO DE SCHOPENHAUER
[M]esmo o ambiente e a paisagem só se revelam ao fotógrafo que sabe captá-los em sua manifestação anônima, num rosto humano. Mas essa possibilidade é em grande medida condicionada pela atitude da pessoa representada. A geração que não pretendia chegar à posteridade pelas fotografias e que em vez disso se refugiava em seu mundo cotidiano, como Schopenhauer se refugia na profundidade da poltrona, na fotografia de 1850, em Frankfurt (e que por isso mesmo transportou consigo, na foto, esse mundo cotidiano) – essa geração não legou suas virtudes a seus sucessores. (Benjamin 1994:102)
Arthur Schopenhauer (daguerreótipo, 1850)
AUGUST SANDER
August Sander reuniu uma série de rostos que em nada ficam a dever à poderosa galeria fisionômica de um Eisenstein ou de um Pudovkin, e realizou esse trabalho numa perspectiva científica. […] Quer sejamos de direita ou de esquerda, temos que nos habituar a ser vistos, venhamos de onde viermos. Por outro lado, teremos também que olhar os outros. A obra de Sander é mais que um livro de imagens, é um atlas, no qual podemos exercitar-nos. (Benjamin 1994:102-3)
Circus workers (August Sander 1926-1932)