fichamento
A noção de estrutura em etnologia (Lévi-Strauss 1952)

A noção de estrutura em etnologia (Lévi-Strauss 1952)

LÉVI-STRAUSS, Claude. 2012. XV. A noção de estrutura em etnologia; XVI. Pósfácio ao Capítulo XV. In: Antropologia Estrutural (Trad.: Beatriz Perrone-Moisés) São Paulo: CosacNaify, pp.397-487. [1952; 1956]

XV. A noção de estrutura em etnologia (1952)
ROUSSEAU (meta)FÍSICO SOCIAL

As investigações que podem ser feitas a esse respeito não devem ser tomadas por verdades históricas, mas apenas por raciocínios hipotéticos e condicionais, mais apropriados para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar sua verdadeira origem, e semelhantes ao que costumam fazer os físicos acerca da formação do mundo. (J.-J. Rousseau, Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens). (Lévi-Strauss 2012:397)

“ESTRUTURA” E “CIÊNCIA”

[Q]uando falamos de estrutura social, consideramos sobretudo os aspectos formais dos fenômenos sociais, de modo que saí- mos do âmbito da descrição para considerar noções e categorias que não pertencem propriamente à etnologia, mas que ela gostaria de utilizar, a exemplo de outras disciplinas científicas que, já há tempos, tratam alguns de seus problemas como desejaríamos tratar dos nossos. Tais problemas diferem, sem dúvida, quanto ao conteúdo, mas parece-nos – talvez tenhamos razão, talvez não – que nossos próprios problemas poderiam ser-lhes aproximados, contanto que adotemos o mesmo tipo de formalização. O interesse das pesquisas estruturais reside, precisamente, no fato de nos darem a esperança de que ciências mais avançadas do que a nossa nesse aspecto possam nos fornecer modelos de métodos e soluções. (Lévi-Strauss 2012:397-8)

ESTRUTURA (modelo formal) =/= RELAÇÕES (realidade empírica)

O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não remete à realidade empírica, e sim aos modelos construídos a partir dela. Fica assim aparente a diferença entre duas noções tão próximas que muitas vezes foram confundidas, isto é, estrutura social e relações sociais. As relações sociais são a matéria-prima empregada para a construção de modelos que tornam manifesta a própria estrutura social, que jamais pode, portanto, ser reduzida ao conjunto das relações sociais observáveis em cada sociedade. (Lévi-Strauss 2012:400)

As investigações estruturais não apresentariam nenhum interesse se as estruturas não fossem traduzíveis em modelos cujas propriedades formais sejam comparáveis, independentemente dos elementos que os compõem. A tarefa do estruturalista é identificar e isolar os níveis de realidade que possuem um valor estratégico a partir da perspectiva em que ele se coloca, isto é, que podem ser representados na forma de modelos, qualquer que seja a natureza destes últimos. (Lévi-Strauss 2012:407)

AS 4 CONDIÇÕES DA ESTRUTURA (com menção a Von Newmann)

Consideramos que, para merecerem o nome de estrutura, modelos devem exclusivamente satisfazer a quatro condições. […] Em primeiro lugar, uma estrutura apresenta um caráter de sistema. Consiste em elementos tais que uma modificação de qualquer um deles acarreta uma modificação de todos os demais. […] Em segundo lugar, todos os modelos pertencem a um grupo de transformações, cada uma das quais correspondendo a um modelo da mesma família, de modo que o conjunto dessas transformações constitui um grupo de modelos. […] Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem prever de que modo reagirá o modelo em caso de modificação de um de seus elementos. […] Finalmente, o modelo deve ser de tal modo construído que seu funcionamento possa dar conta de todos os fatos observados. (Lévi-Strauss 2012:400-1)

OBSERVAÇÃO (relações, realidade concreta) =/= EXPERIMENTAÇÃO (estrutura, modelos formais)

Há que distinguir sempre esses dois níveis. A observação dos fatos e a elaboração de métodos que permitam utilizá-los para construir modelos jamais devem ser confundidas com a experimentação por intermédio dos próprios modelos. […] [N]ão há contradição, mas sim íntima correlação, entre a preocupação com o detalhe concreto, própria da investigação etnográfica, e a validade e generalidade que reivindicamos para o modelo construído a partir dela. (Lévi-Strauss 2012:401-2)

No nível da observação, a regra principal – a única, poder-se-ia dizer – é que todos os fatos devem ser precisamente observados e descritos, sem permitir que pressupostos teóricos lhes alterem a natureza ou importância. Essa regra implica uma outra, como decorrência: os fatos devem ser estudados em si mesmos (por quais processos concretos vieram a existir?) e também em relação ao conjunto (o que quer dizer que qualquer mudança observada num ponto será remetida às circunstâncias globais de seu surgimento). (Lévi-Strauss 2012:402)

Entendo por “experimentação com os modelos” o conjunto de procedimentos capazes de permitir saber como um dado modelo reage a modificações, ou comparar uns aos outros modelos de mesmo tipo ou de tipos diferentes. […] Na verdade, são concebíveis muitos modelos, diferentes, porém cômodos em vários aspectos para descrever e explicar um grupo de fenômenos. Contudo, o melhor sempre será o modelo verdadeiro, isto é, aquele que, sendo o mais simples, satisfaça a dupla condição de utilizar única e exclusivamente os fatos considerados e de explicá-los todos. (Lévi-Strauss 2012:401-2)

ESTRUTURAS CONSCIENTES (aparente) x ESTRUTURAS INCONSCIENTES (profundas)

Modelos podem ser conscientes ou inconscientes, dependendo do nível em que funcionam. […] Qualquer modelo pode ser consciente ou inconsciente, essa condição não afeta sua natureza. […] Boas […] mostrou que quanto menos a sociedade em que um grupo de fenômenos ocorre dispuser de um modelo consciente para interpretá-lo ou justificá-lo, mais este se prestará à análise estrutural […]. [U]ma estrutura próxima da superfície do inconsciente torna mais provável a existência de um modelo que a encubra, como uma tela, para a consciência coletiva. […] [O]s modelos conscientes – geralmente chamados de “normas” – estão entre os mais pobres de todos, em razão de sua função, que é perpetuar crenças e costumes, em vez de expor os mecanismos destes. A análise estrutural se depara, por isso, com uma situação paradoxal, bem conhecida pelos lingüistas: quanto mais clara for a estrutura aparente, mais difícil será captar a estrutura profunda, devido aos modelos conscientes e deformados que se interpõem como obstáculos entre o observador e seu objeto. (Lévi-Strauss 2012:403-4)

Pode ser que [o etnólogo] tenha de construir um modelo correspondente a fenômenos cujo caráter de sistema não foi percebido pela sociedade que estuda. É a situação mais simples e aquela que […] propicia o terreno mais favorável para a investigação etnológica. Contudo, em outros casos, o etnólogo não só tem de lidar com material bruto, mas também com modelos já construídos pela cultura considerada, na forma de interpretações. […] Muitas culturas chamadas primitivas elaboraram modelos – de suas regras de casamento, por exemplo – melhores do que os dos etnólogos profissionais. Existem, portanto, duas razões para respeitar esses modelos “caseiros”. Primeiro, eles podem ser bons ou pelo menos fornecer uma via de acesso à estrutura; cada cultura possui seus próprios teóricos, cuja obra merece a mesma atenção que o etnólogo dedica à de seus colegas. Além disso, ainda que os modelos sejam tendenciosos e inexatos, a tendência e o tipo de erro que contêm fazem parte dos fatos a serem estudados; talvez estejam inclusive entre os mais significativos. No entanto, ao dar toda a atenção a esses modelos produzidos pela cultura indígena, o etnólogo nunca deve esquecer que normas culturais não são automaticamente estruturas. São, antes, peças importantes para ajudar a descobrir estruturas; documentos brutos, ou contribuições teóricas, comparáveis às que são feitas pelo próprio etnólogo. (Lévi-Strauss 2012:404-5)

ESTRUTURA =/= MEDIDA

[N]ão existe nenhuma conexão necessária entre a noção de medida e a de estrutura. As pesquisas estruturais surgiram nas ciências sociais como conseqüência indireta de certos desenvolvimentos da matemática moderna, que vem dando cada vez mais importância aos dados qualitativos, afastando-se, assim, da perspectiva quantitativa da matemática tradicional. Em várias áreas, como a lógica matemática, a teoria dos conjuntos, a teoria dos grupos e a topologia, percebeu-se que problemas que não permitiam uma solução métrica podiam, mesmo assim, ser submetidos a um tratamento rigoroso. (Lévi-Strauss 2012:406)

MODELOS MECÂNICOS (mesma escala do fenômeno) =/= MODELOS ESTATÍSTICOS (outra escala)

Um modelo cujos elementos constitutivos estejam na escala dos fenômenos será chamado de “modelo mecânico”, e “modelo estatístico” será aquele cujos elementos estão numa escala diferente. (Lévi-Strauss 2012:406)

Pensemos, por exemplo, no suicídio, que pode ser considerado a partir de duas perspectivas diferentes. A análise dos casos individuais permite construir o que chamaríamos de modelos mecânicos do suicídio, cujos elementos são fornecidos pelo tipo de personalidade da vítima, sua história individual, as propriedades dos grupos primário e secundário a que pertenceu, e assim por diante. Mas pode-se igualmente construir modelos estatísticos, baseados na freqüência dos suicídios durante um determinado período, em uma ou várias sociedades, ou ainda em grupos primários e secundários de tipos diferentes etc. Qualquer que seja a perspectiva adotada, terão sido isolados níveis nos quais o estudo estrutural do suicídio é significativo, ou, em outras palavras, que autorizam a construção de modelos passíveis de comparação: primeiro, para várias formas de suicídio; segundo, para sociedades diferentes; e terceiro para diversos tipos de fenômenos sociais. Portanto, o progresso científico não consiste apenas na descoberta de constantes características para cada nível, mas também no isolamento de níveis ainda não localizados, nos quais o estudo de determinado fenômeno mantém um valor estratégico. (Lévi-Strauss 2012:408)

A opção é sempre a mesma, estudar a fundo um caso, e a única diferença está no recorte do “caso”, cujos elementos constitutivos estarão (dependendo do padrão adotado) na escala do modelo projetado ou numa escala diferente. (Lévi-Strauss 2012:414)

SISTEMA DE REFERÊNCIA (espaço e tempo)

Ora, é impossível conceber as relações sociais fora de um meio comum que lhes serve de sistema de referência. O espaço e o tempo são os dois sistemas de referência que permitem pensar as relações sociais, em conjunto ou separadamente. (Lévi-Strauss 2012:415)

O tempo e o espaço social também devem ser distinguidos por sua escala. Etnólogos utilizam “macrotempo” e “microtempo”, “macroespaço” e “microespaço”. Com plena legitimidade, os estudos estruturais tomam suas categorias emprestadas tanto da pré-história, da arqueologia e da teoria difusionista, como da topologia psicológica fundada por Lewin e da sociometria de Moreno. (Lévi-Strauss 2012:416-7)

Temos, portanto, meios de estudar os fenômenos sociais e mentais a partir de suas manifestações objetivas, numa forma exteriorizada e – poder-se-ia dizer – cristalizada. E isso não apenas nos casos de configurações espaciais estáveis. Configurações instáveis, mas recorrentes, podem ser analisadas e criticadas do mesmo modo – as que se pode observar na dança e no ritual, por exemplo. (Lévi-Strauss 2012:420)

CULTURA

Chamamos de cultura todo conjunto etnográfico que, do ponto de vista da pesquisa, apresenta afastamentos significativos em relação a outros. Se buscarmos determinar os afastamentos significativos entre a América do Norte e a Europa, tratá-las-emos como culturas diferentes, mas se, suponhamos, o interesse forem os afastamentos significativos entre Paris e Marselha, por exemplo, esses dois conjuntos urbanos poderão ser provisoriamente constituídos como duas unidades culturais. Como o objeto último das pesquisas estruturais são as constantes ligadas a tais afastamentos, percebe- se que a noção de cultura pode corresponder a uma realidade objetiva, sem deixar de ser função do tipo de pesquisa em questão. Uma coleção de indivíduos, contanto que seja objetivamente dada no tempo e no espaço, remete simultaneamente a vários sistemas de cultura: universal, continental, nacional, provincial, local etc., e familiar, profissional, confessional, político etc. […] Contudo, na prática, esse nominalismo não deve ser levado ao extremo. Na verdade, o termo cultura é empregado para reunir um conjunto de afastamentos significativos cujos limites, conforme prova a experiência, coincidem aproximadamente. O fato de tal coincidência nunca ser absoluta e de jamais ocorrer em todos os níveis ao mesmo tempo não deve nos impedir de utilizar a noção de cultura, que é fundamental em etnologia, e possui o mesmo valor heurístico que a de isolado em demografia. Do ponto de vista lógico, as duas noções são do mesmo tipo. Aliás, os próprios físicos nos encorajam a conservar a noção de cultura, já que N. Bohr escreve: “As diferenças tradicionais (das culturas humanas) se assemelham, em vários aspectos, aos modos diversos, mas equivalentes, como se pode descrever uma experiência em física” (1939:9). (Lévi-Strauss 2012:424-5)

OS 4 TIPOS DE ESTRUTURAS DE COMUNICAÇÃO (mulheres, bens e serviços, mensagens, genes)

Uma sociedade é feita de indivíduos e de grupos que se comunicam entre si. Contudo, a presença ou ausência de comunicação não pode ser definida de maneira absoluta. A comunicação não cessa nos limites da sociedade. Em vez de fronteiras rígidas, trata-se, antes, de limiares, marcados por um enfraquecimento ou uma deformação da comunicação, nos quais ela não desaparece, mas atinge seu nível mínimo. Essa situação é suficientemente significativa para que a população (tanto fora como dentro) dela tome consciência. […] Em qualquer sociedade, a comunicação se opera no mínimo em três níveis: comunicação de mulheres, comunicação de bens e serviços e comunicação de mensagens. Conseqüentemente, o estudo do sistema de parentesco, o do sistema econômico e o do sistema lingüístico apresentam certas analogias. Aos três se aplica o mesmo método, e eles diferem apenas quanto ao nível estratégico em que cada um se situa no seio de um universo comum. Poder-se-ia acrescentar que as regras de parentesco e de casamento definem um quarto tipo de comunicação, o dos genes entre os fenótipos. A cultura não consiste, portanto, exclusivamente em formas de comunicação que lhe são próprias (como a linguagem), mas também – e talvez sobretudo – em regras aplicáveis a todos os tipos de “comunicação”, quer esta se efetue no plano da natureza ou no da cultura. (Lévi-Strauss 2012:425-6)

Se nos é permitido esperar que um dia a antropologia social, a ciência econômica e a lingüística se associem para fundar uma disciplina comum, que seria a ciência da comunicação, reconheçamos desde já que ela consistirá sobretudo em regras. Tais regras são independentes da natureza dos participantes (indivíduos ou grupos) cujo jogo regem. […] Desse ponto de vista, a natureza dos jogadores é irrelevante, o importante é saber quando um jogador pode escolher e quando não pode. (Lévi-Strauss 2012:429-30)

Introduzimos, assim, nos estudos relativos ao parentesco e ao casamento, concepções derivadas da teoria da comunicação. A “informação” de um sistema de casamento é função do número de alternativas de que dispõe o observador para definir o status matrimonial (isto é, de cônjuge possível, proibido ou designado) de um indivíduo qualquer em relação a um determinado pretendente. […] Inversamente, as regras de casamento constituem a redundância do sistema considerado. Poder-se-ia igualmente calcular a porcentagem das escolhas “livres” (não de modo absoluto, mas em relação a certas condições postuladas por hipótese) que ocorrem numa determinada população matrimonial, e atribuir um valor numérico à sua “entropia”, relativa e absoluta. […] Com isso, abre-se uma nova possibilidade, a de converter modelos estatísticos em modelos mecânicos e vice-versa. (Lévi-Strauss 2012:430)

A MÁQUINA SOCIAL (sistema) DO PARENTESCO NÃO ESGOTA A ESTRUTURA SOCIAL

Para o autor destas linhas, os sistemas de parentesco, as regras de casamento e as de filiação formam um conjunto coordenado, cuja função é garantir a permanência do grupo social, entrecruzando, como num tecido, as relações consangüíneas e as fundadas na aliança. Esperamos ter assim contribuído para elucidar o funcionamento da máquina social, que extrai perpetuamente as mulheres de suas famílias consangüíneas para redistribuí-las por outros grupos domésticos, que por sua vez se transformam em famílias consangüíneas, e assim sucessivamente. […] Na ausência de influências externas, essa máquina funcionaria indefinidamente, e a estrutura social conservaria um caráter estático. Mas não é isso que ocorre. Devemos, conseqüentemente, […] explicar as transformações diacrônicas da estrutura e, ao mesmo tempo, as razões pelas quais uma estrutura social jamais se reduz a um sistema de parentesco. (Lévi-Strauss 2012:445-6)

TRANSITIVIDADE, ORDEM e CICLO

[S]ão introduzidas em nossos estudos noções como as de transitividade, ordem e ciclo, passíveis de tratamento formal e que permitem a análise de tipos generalizados de estruturas sociais em que os níveis de comunicação e de subordinação podem estar integrados. Talvez se possa ir ainda mais longe, até a integração das ordens, atuais ou virtuais. Na maioria das sociedades humanas, o que chamamos de “ordem social” pertence a um tipo transitivo e não cíclico: se A é superior a B e B superior a C, A deve ser superior a C e C não pode ser superior a A. No entanto, as próprias sociedades que obedecem a tais regras em termos práticos concebem outros tipos de ordem, que poderíamos chamar “virtuais” ou “ideais”, quer no plano da política, no do mito ou no da religião, e essas ordens são por vezes intransitivas e cíclicas. Pensemos nos contos de reis que desposam camponesas, ou na crítica feita por Stendhal da democracia americana, em que um gentleman obedece às ordens de seu merceeiro. (Lévi-Strauss 2012:451-2)

DIFERENTES TIPOS DE ESTRUTURA-ORDEM (parentesco, organização social, estratificação econômica)

Para o etnólogo, a sociedade envolve um conjunto de estruturas que correspondem a diversos tipos de ordem. O sistema de parentesco fornece um meio de ordenar os indivíduos segundo certas regras, a organização social fornece outro, as estratificações sociais ou econômicas, um terceiro. Todas essas estruturas de ordem podem ser elas mesmas ordenadas, contanto que se percebam as relações que as unem e de que modo elas agem umas sobre as outras do ponto de vista sincrônico. (Lévi-Strauss 2012:452)

ORDENS VIVIDAS =/= ORDENS CONCEBIDAS

[A]té agora, consideramos apenas ordens “vividas”, isto é, ordens que são elas mesmas função de uma realidade objetiva, e que se pode abordar do exterior, independentemente da representação que dela têm os homens. Observaremos agora que tais ordens “vividas” sempre supõem outras, que é indispensável levar em consideração para compreender não apenas aquelas, como também o modo como cada sociedade tenta integrá-las num todo ordenado. Essas estruturas de ordem “concebidas”, e não mais “vividas”, não correspondem diretamente a nenhuma realidade objetiva. À diferença daquelas, não são passíveis de controle experimental, já que chegam a invocar uma experiência específica com a qual, aliás, às vezes se confundem. O único controle a que podemos submetê-las, para analisá-las, é portanto o das ordens do primeiro tipo, ou ordens “vividas”. As ordens “concebidas” correspondem ao âmbito do mito e da religião. Podemos nos perguntar se a ideologia política das sociedades contemporâneas não pertenceria também a essa categoria. (Lévi-Strauss 2012:452-3)

MODELOS ANTROPOLÓGICOS: COMUNICAÇÃO entre MECÂNICA e ESTATÍSTICA

A antropologia, em busca de modelos, se encontra numa situação intermediária [entre modelos mecânicos e estatísticos]: os objetos a que nos dedicamos – papéis sociais e indivíduos integrados numa dada sociedade – são muito mais numerosos do que os da mecânica newtoniana, mas não o suficiente para uma análise estatística e de cálculo de probabilidades. Encontramo-nos, assim, em terreno híbrido e ambíguo; nossos fatos são complicados demais para serem tratados de um modo, mas não o bastante para que se possa tratá-los do outro. […] As novas perspectivas abertas pela teoria da comunicação resultam, justamente, dos métodos originais que foi preciso elaborar para tratar de objetos – os signos – que podem então ser submetidos a uma análise rigorosa, embora seu número seja elevado demais para a mecânica clássica e ao mesmo tempo reduzido demais para que os princípios da termodinâmica lhes sejam aplicáveis. (Lévi-Strauss 2012:455-6)

O atual estado das pesquisas estruturais em antropologia é, portanto, o seguinte. Conseguimos isolar fenômenos que são do mesmo tipo dos que as teorias da estratégia e da comunicação já permitem estudar de modo rigoroso. Os fatos antropológicos se encontram numa escala suficientemente próxima da desses outros fenômenos para justificar a esperança de um tratamento análogo. […] Ajustar as técnicas de observação a um quadro teórico muito mais avançado do que elas, eis uma situação paradoxal, que a história das ciências ilustra raramente. Cabe à antropologia moderna aceitar esse desafio. (Lévi-Strauss 2012:456-7)

XVI. Posfácio ao capítulo XV
ETNOLOGIA como CIÊNCIA RESIDUAL (busca afastamentos diferenciais entre estruturas onde elas normalmente não eram esperadas)

Nenhum de nós [etnólogos] jamais sonhou em substituir por um tipo ou uma estrutura fixa essa realidade palpitante. A busca de estruturas intervém num segundo estágio, quando, depois de termos observado o que existe, tentamos extrair daí os únicos elementos estáveis – e sempre parciais – que permitem comparar e classificar. […] [N]ão partimos de uma definição a priori do que é estruturável e do que não o é. Temos plena consciência da impossibilidade de saber de antemão onde e em que nível de observação a análise estrutural pode ser aplicada. Nossa experiência do concreto ensinou-nos que, muito freqüentemente, são os aspectos mais fluidos, os mais fugidios, da cultura que dão acesso a uma estrutura; daí a atenção apaixonada, quase maníaca, que damos aos detalhes. Mantemos sempre em mente o exemplo das ciências naturais, cujo progresso de uma estrutura a outra (sempre mais inclusiva e mais explicativa do que a primeira) sempre consistiu em descobrir uma estruturação melhor por meio de fatos mínimos, que as hipóteses anteriores tinham deixado de lado por considerarem-nos “a-estruturais”. Um exemplo disso são as anomalias do periélio de Mercúrio, “a-estruturais” no sistema de Newton, que serviriam de base para a descoberta de uma estrutura melhor pela teoria da relatividade. A etnologia, ciência residual por excelência, já que a parte que lhe cabe é o “resíduo” de sociedades que as ciências humanas tradicionais não tinham se dignado a tratar (justamente porque as consideravam “a-estruturais”), só pode, por vocação própria, utilizar o método dos resíduos. […] Mas sabemos que uma sociedade concreta jamais se reduz a sua, ou melhor, a suas estruturas (pois há várias delas, em diferentes níveis, e essas diversas estruturas se encontram elas mesmas, ao menos parcialmente, “em estrutura”). Como eu escrevia em 1949, criticando essa forma primária do estruturalismo que é chamada de funcionalismo: “Dizer que uma sociedade funciona é um truísmo; mas dizer que tudo, numa sociedade, funciona é um absurdo” […] Na verdade, nosso objetivo último não é tanto saber o que são, cada uma em si mesma, as sociedades que constituem nosso objeto de estudo, e mais descobrir como elas diferem umas das outras. Como em lingüística, são esses afastamentos diferenciais que constituem o objeto próprio da etnologia. (Lévi-Strauss 2012:463-4)

D’ARCY THOMPSON sobre MORFOLOGIA

Acontece freqüentemente, em morfologia, de a tarefa principal consistir em comparar formas vizinhas, mais do que definir precisamente cada uma delas; e as deformações de uma figura complicada podem ser um fenômeno fácil de compreender, ainda que a figura em si deva permanecer não analisada e não definida (D’Arcy Wentworth Thompson 1952, v. ii: 1032). (Lévi-Strauss 2012:465)

NOÇÃO DE ESTRUTURA surge da NECESSIDADE de COORDENAR ESFORÇOS ISOLADOS

Parece-me […] digno de nota que vários etnólogos tenham-se voltado, de modo independente, para a noção de estrutura, durante os anos de guerra em que as circunstâncias nos condenavam a um certo isolamento. A convergência mostra o quanto essa noção era indispensável para resolver problemas enfrentados por nossos predecessores. Ela fornece a nossos procedimentos compartilhados um pressuposto de validade, para além das diferenças que nos distinguem em outros pontos. (Lévi-Strauss 2012:465)

ORDEM DAS ORDENS (sistemas de transformação e materialismo dialético)

A ordem das ordens não é uma recapitulação dos fenômenos submetidos à análise. É a expressão mais abstrata das inter-relações entre os níveis em que a análise estrutural pode ser realizada, tanto que as fórmulas chegam a ser as mesmas para sociedades histórica e geograficamente afastadas; um pouco, se me permitem a comparação, como moléculas que, apesar de possuírem composições químicas diferentes, umas simples, outras complicadas, pudessem ter ambas uma estrutura “reta” ou uma estrutura “invertida”. Assim, entendo por ordem das ordens as propriedades formais do conjunto composto por subconjuntos, dos quais cada um corresponde a um nível estrutural dado. […] Como diz Jean Pouillon, […] trata-se de saber se é possível elaborar “um sistema de diferenças que não conduza nem à sua mera justaposição nem a seu apagamento artificial” (1956: 155). (Lévi-Strauss 2012:474-5)

Não postulo uma espécie de harmonia pré-estabelecida entre os diversos níveis de estrutura. Eles podem perfeitamente estar – e muitas vezes estão – em contradição uns com os outros, mas as modalidades segundo as quais se contradizem pertencem todas ao mesmo grupo. É exatamente isso, aliás, o que mostra o materialismo histórico, quando afirma que é sempre possível passar, por transformação, da estrutura econômica ou da das relações sociais para a estrutura do direito, da arte, ou da religião. Mas Marx jamais pretendeu que tais transformações fossem de um único tipo, que a ideologia, por exemplo, só pudesse refletir as relações sociais, como um espelho. Segundo ele, essas transformações são dialéticas e, em alguns casos, ele enfrenta dificuldades para encontrar a transformação indispensável que parecia inicialmente refratária à análise. […] Se admitirmos, na própria linha de pensamento de Marx, que as infra-estruturas e as superestruturas comportam múltiplos níveis, e que há vários tipos de transformação para passar de um nível a outro, será também concebível a possibilidade, em última análise e abstraindo-se os conteúdos, de caracterizar diversos tipos de sociedade por leis de transformação: fórmulas indicando o número, a potência, o sentido e a ordem das torções que seria preciso anular, por assim dizer, para reencontrar uma relação de homologia ideal (logicamente, não moralmente) entre os diversos níveis estruturados. […] Pois essa redução é, ao mesmo tempo, uma crítica. Ao substituir um modelo complexo por um modelo simples dotado de melhor rendimento lógico, o antropólogo desvela os rodeios e artifícios, conscientes e inconscientes, a que cada sociedade recorre para tentar resolver as contradições que lhe são inerentes ou, pelo menos, dissimulá-las. (Lévi-Strauss 2012:475-6)

Tags :