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<em>A ridícula ideia de nunca mais te ver</em> (Montero 2019)

A ridícula ideia de nunca mais te ver (Montero 2019)

MONTEIRO, Rosa. 2019. A ridícula ideia de nunca mais te ver. (Trad.: Mariana Sanchez) São Paulo: Todavia.

CORPO

Como é difícil a relação com nosso organismo. Somos nosso corpo, mas não podemos evitar a sensação de alteridade, de estranheza, de reféns da própria carne. (Montero 2019:163)

MORTE e LUTO

Apenas em nascimentos e mortes é que saímos do tempo. A Terra detém sua rotação e as trivialidades com que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar durante um instante pela fresta da verdade – monumental, ardente e impassível. Nunca nos sentimos tão autênticos quanto ao beirarmos essas fronteiras biológicas: temos a clara consciência de viver algo grandioso. (Montero 2019:9)

Sempre, nunca, palavras absolutas que não podemos compreender, sendo como somos: pequenas criaturas presas em nosso breve tempo. Você nunca brincou, na infância, de tentar imaginar a eternidade? O infinito que se desenrola à sua frente como uma vertiginosa e interminável fita azul? A primeira coisa que te derruba no luto: a incapacidade de pensar nele e admiti-lo. A ideia simplesmente não entra na sua cabeça. Como é possível que não esteja mais? Aquela pessoa que ocupava tanto espaço no mundo, onde foi que se meteu? O cérebro não consegue entender que tenha desaparecido para sempre. E que diabos é sempre? É um conceito anti-humano. Quero dizer, que foge à nossa possibilidade de entendimento. Como assim, não vou vê-lo nunca mais? Nem hoje, nem amanhã, nem depois, nem daqui a um ano? É uma realidade inconcebível que a mente rejeita: não vê-lo nunca mais é uma piada sem graça, uma ideia ridícula. (Montero 2019:23)

Vivemos tão alienados da morte que não sabemos como agir. Temos uma enorme confusão na cabeça. No meu caso, encarei o luto como uma doença da qual precisava me curar o quanto antes. Creio que é um erro bastante comum, porque na nossa sociedade a morte é vista como uma anomalia, e o luto, como uma patologia. (Montero 2019:26)

Nos primeiros dias, as pessoas lhe dizem: “Chore, chore que faz bem”; e é como se dissessem: “É preciso furar e espremer esse abscesso para sair o pus”. E é justamente nos primeiros momentos que você tem menos vontade de chorar, pois está em choque, exaurida e fora do mundo. Mas logo depois, em seguida, justo quando você está encontrando o fluxo aparentemente inesgotável do seu pranto, as pessoas à sua volta começam a lhe cobrar um esforço de vitalidade e otimismo, de esperança no futuro, de recuperação da sua tristeza. Porque é exatamente assim que se diz: Fulano ainda não se recuperou da morte de Sicrana. Como se se tratasse de uma hepatite (mas você não se recupera nunca, esse é o erro, a gente não se recupera: se reinventa). Não é minha intenção criticar ninguém ao contar isso: eu também agi assim antes de saber! Também disse: chore, chore. E três meses depois: Vamos, chega, levante essa cabeça, ânimo. Com a melhor das intenções e o pior dos resultados, certamente. (Montero 2019:27)

[O] luto é algo estranho. Principalmente, creio eu, os lutos extemporâneos, as mortes que ainda não deveriam ter acontecido. E é estranho porque, mesmo que o tempo passe, a dor da perda, nos momentos em que surge, continua parecendo igualmente intensa. É claro que você está cada vez melhor, muito melhor: a dor é disparada com menos frequência e você pode lembrar seu morto sem sofrer. Mas quando a tristeza surge, e você não sabe muito bem por que surge, é a mesma dilaceração, a mesma brasa. Pelo menos é assim comigo, e já se passaram três anos. Quem sabe com o tempo a mordida amenize, ou não. Isso é algo de que ninguém fala; talvez seja um daqueles segredos que todos guardamos, como a #fragilidademasculina. Talvez nós, viúvos, nos sintamos estranhos ou péssimos viúvos por continuarmos sentindo a mesma dor aguda depois de tanto tempo. Talvez tenhamos vergonha e pensemos que não soubemos nos “recuperar”. Mas já vou dizendo que não existe recuperação: não é possível voltar a ser quem você era. Existe a reinvenção, e não é algo ruim. Com sorte, pode ser que consiga se reinventar melhor do que antes. Afinal de contas, agora você sabe mais. (Montero 2019:156-7)

DIVÓRCIO, VIUVEZ e DEPRESSÃO

Em julho de 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um estudo sobre a depressão realizado em colaboração com vinte centros internacionais, dois deles espanhóis. A pesquisa foi feita com 89 037 cidadãos de dezoito países, ou seja, a amostra era realmente grande. É um trabalho muito interessante que compara todo tipo de fatores: renda, cultura, sexo, idade. Mas o que agora me interessa, e por isso toco no assunto, é que descobriram que estar separado ou divorciado aumenta o risco de sofrer depressões agudas em doze dos países, enquanto ser viúvo ou viúva tem menos influência em quase todos os lugares. Achei um dado incrível, chocante, que parece ir na contramão do que observamos e achamos lógico. Mas, se não se tratar de um erro e se for assim mesmo, o que isso significa? Que os separados ou divorciados se sentem fracassados? Que quando seu cônjuge morre, enquanto ainda é seu cônjuge, você pode mitificar essa relação, torná-la eterna, considerá-la bemsucedida? Será que essas malditas mortes podem gerar algum pequeno consolo, afinal de contas? (Montero 2019:71)

CRIATIVIDADE e SOFRIMENTO

A origem da criatividade está no sofrimento, o próprio e o alheio. A verdadeira dor é inefável, nos deixa surdos e mudos, vai além de qualquer descrição e qualquer consolo. A verdadeira dor é uma baleia grande demais para ser arpoada. (Montero 2019:29)

A arte é uma ferida feita de luz, dizia Georges Braque. Precisamos dessa luz, não apenas quem escreve, pinta ou compõe músicas, mas também aqueles que leem, veem quadros ou ouvem um concerto. Todos precisamos da beleza para que a vida nos seja suportável. Fernando Pessoa expressou isso muito bem: “A literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta”. Não, não basta. Por isso estou escrevendo este livro. Por isso você o está lendo. (Montero 2019:29)

Nós, humanos, nos defendemos da dor sem sentido enfeitando-a com a sensatez da beleza. Esmagamos carvão com as próprias mãos e às vezes conseguimos fazer que pareçam diamantes. (Montero 2019:106)

HOMENS e MULHERES

[N]ossas mães viveram tolhidas pelo machismo, mas conseguiram vislumbrar a mudança social que ocorria diante dos seus olhos, embora já não pudessem se beneficiar dela. Que frustrante deve ter sido para elas não poder gozar das liberdades dos novos tempos por uma margem tão pequena! “É que eu nasci cedo demais”, “É que eu deveria ter trinta anos a menos”: perdi a conta de quantas vezes ouvi aquelas mulheres repetirem essas frases. Então elas criaram suas filhas, várias gerações de filhas, movidas por essa raiva e essa dor. E encheram nossos ouvidos com seus amargos, porém hipnotizantes, sussurros; com palavras incandescentes como chumbo líquido: “Não tenha filhos, não seja como eu, não vire prisioneira da vida doméstica, seja livre, independente, faça por mim tudo o que eu não pude fazer”. E nós, é claro, obedecemos: milhares de espanholas (e italianas) prescindiram dos filhos. #honraramãe. […] Agora que penso nisso, aquela inflamada ordem materna seria o mesmo que dizer: não seja tão mulher. Não seja tão feminina. Ou não seja tanto quanto eu fui. Seja outro tipo de mulher. Seja uma #mutante. Essa fêmea sem lugar, ou em busca de outro #lugar. (Montero 2019:36-7)

As mulheres padecem da maldita síndrome da redenção. […] Acho que os homens, por sua vez, costumam ser mais saudáveis nesse ponto e são capazes de nos amar pelo que realmente somos. Não nos idealizam tanto, provavelmente porque não têm tanta necessidade (durante séculos o amor foi a única paixão permitida às mulheres, enquanto os homens podiam se apaixonar por muitas outras coisas), ou talvez não tenham tanta imaginação. O fato é que eles nos olham e nos veem, enquanto nós olhamos para eles e, no calor da paixão à primeira vista, o que vemos é uma fabulosa quimera. Há uma frase genial de um comediante francês chamado Arthur que diz: “O problema dos casais é que as mulheres se casam pensando que eles vão mudar, enquanto os homens se casam pensando que elas nunca vão mudar”. Que tremenda lucidez e que tiro na mosca! A imensa maioria de nós está empenhada em mudar o amado para que se adapte aos nossos sonhos grandiosos. Achamos que, se o curarmos das suas supostas feridas, nosso amado idealizado emergirá em todo o seu resplendor. As histórias infantis, tão sábias, dizem isso claramente: passamos a vida beijando sapos, convencidas de que podemos transformá-los em príncipes encantados. […] Mas sapos são sapos, coitadinhos. Ninguém pode mudar ninguém, e é profundamente injusto exigir que um batráquio se transforme em outra coisa. De modo que, quando o tempo passa e vemos que nosso homem não vira super-homem, começamos a sentir uma frustração e um rancor insanos. Apagamos o brilho dos nossos olhos, aqueles refletores com que antes costumávamos iluminá-los como se fossem as estrelas do nosso filme, e passamos a olhá-los com desprezo e desilusão, como se fossem carrapatos. Quando Arthur diz que os homens pensam que não vamos mudar, não se refere a ficarmos bundudas ou cheias de celulite, mas sim a ou de cuidar deles como se fossem deuses, a destruirmos a vida a dois com discussões amargas. Às vezes esse processo de desencanto é tão feroz que a convivência se transforma num inferno para ambos. Patricia Highsmith, formidável domadora de demônios, reflete essa cruel transformação do amor em ódio em vários dos seus romances, mas sobretudo no desolador Águas profundas. Em contrapartida, acho que desde o princípio somos para eles umas rãzinhas encantadoras. Nisso são menos exigentes, mais generosos. Invejo a naturalidade com que nos veem e nos desejam. (Montero 2019:56-8)

INTIMIDADE

Não há nada ridículo na #intimidade, não há nada escatológico nem repudiável nesse lento fogo doméstico de suor e febre, de ranhos e espirros, de peidos e roncos. Bem, estes últimos costumam ser motivo de muitas brigas, mas mesmo a isso você acaba se habituan do. A #intimidade: não ter muito claro onde você termina e o outro começa. E saber tudo daquela pessoa, ou ao menos saber tanto. (Montero 2019:64)

FILHOS e EGOÍSMO

Eu não tive filhos […]. Na verdade, às vezes lamento não tê-los tido, porque procriar é um passo da maturidade física e psíquica: só esse amor absoluto e cintilante que os pais sentem pelos filhos permite superar o egoísmo individual que faz você colocar a própria integridade acima de tudo. Quero dizer que os pais são capazes de morrer pelas suas crianças: é um imperativo genético, um recurso de sobrevivência da espécie, mas também um gesto do coração que faz você ficar mais completo, mais humano. Nós que não temos filhos nunca cresceremos tanto assim. Eu não morreria por ninguém. Uma pena. (Montero 2019:68-9)

O MILAGRE PIERRE-MARIE

Pierre disse à Marie que, se permanecera solteiro até os 36 anos, era porque não acreditava na possibilidade de um casamento que respeitasse o que para ele era uma prioridade absoluta, a entrega à Ciência. Em Marie, no entanto, encontrara sua alma gêmea. De fato, no começo da relação, em vez de mandar a ela um buquê de flores ou bombons, Pierre lhe enviou uma cópia do seu último trabalho, intitulado “Sobre a simetria dos fenômenos físicos: Simetria de um campo elétrico e de um campo magnético”, que, convenhamos, não é um tema que qualquer garota ache fascinante. […] Mas Marie achava. E não só: entendia do assunto, o que já era sem dúvida admirável. Sempre me encantaram essas sintonias, essas extraordinárias #coincidências do destino que de tempos em tempos a vida nos concede quando se torna magnânima, e que fazem com que, na imensidão do mundo, dois seres de difícil adaptabilidade se unam, como neste caso: duas mentes superdotadas, duas pessoas #esquisitas, solitárias, de intensa e utópica entrega, apaixonadas pela Ciência, de idades parecidas, do sexo oposto, sendo heterossexuais, as duas sentimentalmente desimpedidas no momento do encontro, ambas na idade ideal (porque podiam ter se conhecido idosos ou crianças) e, ainda por cima, atraídas sexualmente uma pela outra! Não é um milagre? Pois, para além dos horrores que tanto chamam a nossa atenção, a vida também está cheia desses prodígios. (Montero 2019:84)

PIERRE SOCIÓLOGO DA FORÇA

Pierre Curie explicou esse dilema entre convicção e conformismo com sua lógica formidável e transparente: […] “Precisamos ganhar a vida e isso nos obriga a nos transformar numa engrenagem da máquina. O mais doloroso são as concessões que nos vemos forçados a fazer aos preconceitos da sociedade em que vivemos. Devemos fazer mais ou menos concessões conforme nos sentimos mais fracos ou mais fortes. Se você não faz concessões suficientes, o oprimem; se faz em demasia, é ignóbil e menospreza a si próprio.” […] Impossível expressá-lo melhor. A vida mancha. (Montero 2019:167)

A EXCEPCIONALIDADE DE MARIE CURIE

Marie Curie não foi apenas a primeira mulher a receber um prêmio Nobel e a única a receber dois, mas a primeira a se formar em Ciências na Sorbonne, a primeira a se doutorar em Ciências na França, a primeira a ter uma cátedra… Foi a primeira em tantas frentes que é impossível enumerá-las. Uma pioneira absoluta. Um ser diferente. Também foi a primeira mulher a ser enterrada pelos seus próprios méritos no Panteão dos Homens Ilustres [sic] de Paris. Seus restos foram transladados para lá no dia 26 de abril de 1995 com toda a pompa e circunstância (aliás, no Panteão também estão Pierre Curie e Paul Langevin, respectivamente marido e amante de Marie), e o discurso do presidente Mitterrand, na época já muito doente, enfatizou “a luta exemplar de uma mulher” numa sociedade em que “as atividades intelectuais e as responsabilidades públicas eram reservadas aos homens”. Eram, ele disse. Como se essas desigualdades já tivessem sido completamente superadas no mundo contemporâneo. Mas Marie Curie continua sendo a única mulher enterrada no Panteão; e o Panteão ainda é chamado, como se pode imaginar, de Homens Ilustres. Como aquela polonesa sem apoio nem dinheiro conquistou tudo isso, tão cedo, tão só, em circunstâncias tão desfavoráveis? Foi uma mulher inédita. Uma guerreira. Uma #mutante. Por isso é que estava sempre tão séria, tão triste? Por isso exibia aquela expressão tão trágica em todas as suas fotos? Inclusive nas instantâneas, que, como a seguinte, são anteriores à sua viuvez. (Montero 2019:19-20)

UMA INTUIÇÃO GENIAL (e seu aparato experimental)

Os raios invisíveis que Becquerel descobrira, sobre os quais Marie havia se proposto a escrever sua tese, tinham a propriedade de fazer com que o ar ao redor conduzisse eletricidade, e ocorreu a Madame Curie medir o grau de eletrificação do ar para estudar o fenômeno. Por que teve semelhante ideia? Foi uma intuição genial, fruto do seu talento, mas é provável que também tenha influenciado o fato de um dos aparelhos inventados por Pierre [junto com seu irmão] Jacques, ser o eletrômetro piezoelétrico de quartzo, que servia justamente para fazer com enorme precisão essas medições muito sutis. Parece que era um instrumento diabolicamente difícil de utilizar, mas Pierre ensinou sua esposa e Marie aprendeu com aquele perfeccionismo obstinado e obsessivo que a caracterizava. Mesmo com as mãos duras de frio, ela era fantástica. (Montero 2019:89-90)

MARIE BRUXA BOA

No pátio do galpão, aquela mulher magra, que durante um dia inteiro mal comia metade de uma salsicha, arrastava de um lado para outro cargas de vinte quilos e mexia caldeirões enormes de mineral fervente com uma barra de ferro pesada quase maior do que ela. Era uma bruxa boa, uma feiticeira do bem. Passou três longos e extenuantes anos fazendo isso, e no final conseguiu extrair o rádio, que era como um daqueles espíritos das histórias infantis, uma substância ínfima flamejando com um brilho verde-azulado. Muito lindo, sem dúvida. Porém mortal. (Montero 2019:91)

MARIE CANSADA

Que dias mais cansativos, os de Madame Curie: além de cuidar da casa, estava fazendo um trabalho de investigação sobre as propriedades magnéticas do aço, que haviam lhe oferecido por uns poucos francos (precisavam do dinheiro). Somado a isso, começou a prestar concursos para dar aulas no ensino médio, também por motivos financeiros. E à noite assistia aulas sobre cristais para poder entender melhor o trabalho de Pierre (impressionante). Tudo isso, que já era muito, piorou em 1897, quando Marie engravidou de Irène. Parece que teve uma gravidez horrível, cheia de náuseas, embora, sempre obstinada, tentasse esquecer seu estado e trabalhar como se nada tivesse mudado. Mas em setembro, quando sua filha nasceu, as coisas chegaram a um ponto caótico: “Marie se viu tendo de enfrentar uma grande quantidade de trabalho e ao mesmo tempo atender a menina. Essa importante questão passou despercebida ou foi minimizada em muitas biografias de Curie”, diz, com toda razão, Barbara Goldsmith no seu magnífico livro sobre Marie. […] Estava a ponto de perder a razão. Por sorte (pode-se dizer por sorte?), a mãe de Pierre faleceu muito oportunamente e seu viúvo, que era um homem adorável, se mudou para a residência do casal e se dedicou a cuidar da menina. Como a vida é estranha: talvez sem essa morte, esse traslado, esse bom sogro, Marie Curie nunca tivesse existido. (Montero 2019:86-7)

A MORTE DE MARIE

Em maio de 1934, sua saúde precária entrou em queda. Os médicos hesitavam: será gripe, bronquite? Mandaram-na para um hospital de tuberculosos porque pensaram que tinha atingido um pulmão. Morreu no dia 4 de julho, e este foi o diagnóstico final: “Anemia aplástica perniciosa com rápida evolução febril. A medula óssea não reagiu, provavelmente porque fora prejudicada por um longo acúmulo de radiações”. No fim, o esplendoroso rádio foi acusado num documento oficial de ser o assassino de Madame Curie. (Montero 2019:169)

CARRANCUDA?

Como aquela polonesa sem apoio nem dinheiro conquistou tudo isso, tão cedo, tão só, em circunstâncias tão desfavoráveis? Foi uma mulher inédita. Uma guerreira. Uma #mutante. Por isso é que estava sempre tão séria, tão triste? Por isso exibia aquela expressão tão trágica em todas as suas fotos? Inclusive nas instantâneas, que, como a seguinte, são anteriores à sua viuvez. (Montero 2019:20)

Não consegui encontrar nenhuma foto de Marie Curie em que ela esteja sorrindo. […] Seu retrato menos sisudo e áspero é de um instantâneo que chamaram de “a foto do casamento”, tirado em 1895. Ali, se você olhar bem, algo parecido com uma levíssima distensão parece insinuar-se na boca de Marie. Nada que possa ser chamado de sorriso, mas pelo menos seu rosto parece franco e quase alegre. (Montero 2019:31)

Em geral, o que mais predomina nos seus retratos é um cenho persistente, uma testa ameaçadora, uma boca contraída pelo esforço. É o rosto de alguém zangado com o mundo, ou, antes, de alguém em plena batalha contra tudo. Mesmo na foto que provavelmente Marie apreciava mais, porque era a que Pierre mais gostava [nas palavras de Marie Curie para um Pierre já morto: “meu pequeno retrato de ‘jovem estudante muito sábia’, como você dizia”], ela aparece com uma expressão carrancuda. (Montero 2019:32)

Sempre tão séria. Tão triste. Ou talvez não? Seu semblante permanentemente austero não seria uma máscara de defesa que já havia petrificado depois de tantos anos? Aquele cenho ameaçador, próprio de uma mulher que teve de derrubar tantas paredes a cabeçadas, não teria acabado se transformando num esgar, num trejeito? Sem falar na fadiga constante do seu corpo debilitado pela radiação. Deve ser difícil sorrir quando se está sempre tão cansada. Mas não esqueçamos a mensagem de Natal que escreveu à sua filha Irène e a Frédèric em dezembro de 1928. Já citei uma parte, agora transcrevo mais algumas linhas: […] “Desejo-lhes um ano de saúde, satisfações e bom trabalho, um ano em que sintam prazer de viver todos os dias, sem esperar que os dias tenham de passar para encontrar satisfação e sem a necessidade de depositar expectativas de felicidade nos dias vindouros. Quanto mais se envelhece, mais se sente que saber gozar o presente é um dom precioso, comparável a um estado de graça.” […] Parece a carta de alguém amargurado? Muito pelo contrário: acho que, depois de uma vida batalhadora e tão difícil, de uma ambição intensa e de uma responsabilidade avassaladora, Manya Skłodowska finalmente soube encontrar a #leveza. (Montero 2019:180-1)

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