Liberar uma energia de desejo… (Guattari 1985 [1977])
Não apenas somos equipados semioticamente para ir à fábrica ou ao escritório, como somos injetados, além disso, de uma série de representações inconscientes, tendendo a moldar nosso ego. Nosso inconsciente é equipado para assegurar a sua cumplicidade com as formações repressivas dominantes. A esta função generalizada de equipamentos que estratifica os papéis, hierarquiza a sociedade, codifica os destinos, oporemos uma função de agenciamento coletivo do socius que não procura mais fazer com que as pessoas entrem nos quadros preestabelecidos, para adaptá-los a finalidades universais e eternas, mas sim que aceita o caráter finito e delimitado historicamente dos empreendimentos humanos. É sob esta condição que as singuaridades do sesejo poderão ser respeitadas. Tomemos o exemplo de Fernand Deligny em Cevennes [N. d[a] Trad.: Deligny é o criador de uma comunidade agrária, na região de Cevennes, para crianças autistas, distante dos estabelecimentos especializados ou das experiências da antipsiquiatria. Viver com crianças autistas sem, por isso, “tratá-las” ou transformar-se em especialista. Os membros da comunidade não são necessariamente psicó1ogos, médicos ou enfermeiros. O próprio Deligny é professor primário. Esta experiência está documentada na revista Recherches, no18, Cahiers de l’immuable, 1 e 2, abril de 1975, CERFI, e num filme de longa-metragem intitulado Ce gamin là.]. Ele não criou ali uma instituição para crianças autistas. Ele tornou possível que um grupo de adultos e de crianças autistas pudessem viver juntos segundo seus próprios desejos. Ele agenciou uma economia coletiva de desejo articulando pessoas, gestos, circuitos econômicos e relacionais, etc. É muito diferente do que fazem geralmente os psicólogos e os educadores que têm, a priori, uma idéia a respeito das diversas categorias de “inválidos”. O saber, aqui, não se constitui mais no poder que se apóia em todas as outras formações repressivas. A única maneira de “percutir” o inconsiente, de fazê-lo sair de sua rotina, é dando ao desejo o meio de se exprimir no campo social. Manifestamente, Deligny gosta das pessoas chamadas de autistas. E estas sabem disso. Assim como aqueles que trabalham com ele. Tudo parte daí. E é para aí que tudo volta. Desde que somos obrigados, por função, a cuidar dos outros, a “assistí-los”, uma espécie de relação ascética sadomasoquista se institui, poluindo em profundidade as iniciativas aparentemente mais inocentes e mais desinteressadas. Imaginemos que “profissionais de autista”, como as pessoas do AMIPI [Nota: Association d’Aide Maternelle et Intellectuelle pour les Personnes Inadaptées (Associação de Ajuda Matema e Intelectual para Pessoas Desadaptadas). Ver a este propósito a nota de Charles Brisset, na revista Autrement, no4, p.180.], se proponham a fazer “como Deligny”, imitando seus gestos, organizando nas mesmas condições. O que é que aconteceria? Eles não fariam mais do que “aprimorar” sua tecnologia microfascista, que até agora não tinha encontrado nada melhor do que se enfeitar com o prestígio “científico” do neobehaviorismo anglo-saxão. Não é ao nível dos gestos, dos equipamentos, das instituições, que o verdadeiro metabolismo do desejo – por exemplo, o desejo de viver – encontrará seu caminho, mas sim no agenciamento de pessoas, de funções de relações econômicas e sociais, voltado para uma política global de libertação. (Guattari 1985 [1977]:65-6)
GUATTARI, Félix. 1985 [1977]. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. (Trad.: Suely B. Rolnik) São Paulo: Brasiliense.
[Imagem: Foto de Fernand Deligny e Janmari, em Cevennes em 1973, por Thierry Boccon-Gibod]