Como prosseguir a tarefa de delinear associações? (Latour 2006)
LATOUR, Bruno. 2006. Como prosseguir a tarefa de delinear associações? Configurações 2:11-27. [2005]
REDEFINIR “SOCIAL” PARA RETOMAR A SOCIOLOGIA:
desejo redefinir a noção de social, retornando ao seu sentido original e tornando-o de novamente capaz de delinear as conexões. Será então possível retomar o objectivo tradicional das ciências sociais com utensílios mais adaptados à tarefa. (Latour 2006:1)
REDEFINIÇÃO ALTERNATIVA DE SOCIOLOGIA:
desejo formular uma definição alternativa da ‘sociologia’ não deixando de conservar este útil vocábulo e mantendo-me fiel, assim o espero, à sua vocação tradicional. (Latour 2006:2)
A SOCIEDADE NÃO EXISTE:
a ‘sociedade’, longe de ser o contexto ‘no qual’ tudo se enquadra, deveria antes ser concebida como um entre muitos conectores que circulam pelo interior de estreitas condutas [tiny conduits]. Esta segunda escola de pensamento poderia adoptar como slogan, com alguma provocação, a famosa exclamação da Senhora Thatcher (mas por razões diferentes!): “A sociedade não existe”. (Latour 2006:5)
AGREGADOS SOCIAIS:
Enquanto os sociólogos (ou os sócio-economistas, os sóciolinguistas, os psicólogos sociais, etc.) tomam os agregados sociais como um dado susceptível de esclarecer os aspectos residuais da economia, da linguística, da psicologia, da gestão, etc., os investigadores desta segunda perspectiva [ANT] consideram os agregados sociais como o que é necessário explicar a partir das [by; pelas] associações fornecidas pela economia, linguística, psicologia, direito, gestão, etc. (Latour 2006:5; itálico no original)
O SOCIAL COMO ASSOCIAÇÃO DE HETEROGÊNEOS:
Apesar de a maioria dos cientistas sociais preferirem chamar ‘social’ a algo de homogéneo, poder-se-á perfeitamente designar por este termo uma série [trail; trilha] de associações entre elementos heterogéneos. Como em ambos os casos a palavra tem a mesma origem – a raiz latina socius – será possível permanecer fiel às primeiras intuições das ciências sociais redefinindo a sociologia já não como ‘ciência do social’ mas como o delinear de associações [tracing of associations; rastreamento de associações]. Tendo em conta este sentido particular, o adjectivo ‘social’ já não qualifica uma coisa entre outras, como uma ovelha negra no meio de um rebanho de ovelhas brancas, mas um tipo de conexão entre coisas que não se definem elas próprias como sociais. […] À primeira vista, esta definição poderá parecer absurda na medida em que se arrisca a diluir a sociologia, significando qualquer tipo de agregado, quer se trate de reacções químicas ou de laços jurídicos, de forças atómicas ou de empresas comerciais, de organismos biológicos ou de assembleias políticas. Mas é isto justamente o que este ramo alternativo da teoria social pretende sugerir, pois todos estes elementos heterogéneos podem encontrar-se [might be; podem ser] recombinados de forma inédita dando lugar, por seu turno, a novos agrupamentos. Longe de ser uma hipótese extravagante, trata-se, pelo contrário, da mais comum das experiências quando estamos perante o puzzle do social [in encountering the puzzling face of the social; quando diante da confusão intrigante do social]. (Latour 2006:5-6)
SEGUIR ALGUÉM (imitação):
O latim socius refere-se a um companheiro, um associado. A genealogia histórica deste termo faz aparecer, nas diferentes línguas, um sentido que é, à partida, o de ‘seguir alguém’, antes de designar o facto de envolver ou de aliar e, por fim, o de ‘ter qualquer coisa em comum’. […] A partir de uma definição original que é co-extensiva a toda a associação, encontramos doravante [now; agora], na linguagem corrente, um uso limitado ao que resta depois de a política, a biologia, a economia, o direito, a psicologia, a gestão, a tecnologia, etc., terem retirado o seu quinhão das associações. (Latour 2006:6; itálicos no original)
PLANT SOCIOLOGY:
De Candolle, inventor da cienciometria – a utilização das estatísticas visando melhorar a actividade científica – era, tal como seu pai, um sociólogo da fábrica [plant sociologist; sociólogo das plantas] (Candolle, 1873/1987). A seu ver, os corais, os babuínos, as árvores, as abelhas, as formigas e as baleias são também elas sociais. A sociobiologia reconheceu bem esta acepção ampla do social […]. É […] perfeitamente possível aceitar esta extensão sem conceder demasiado crédito à definição demasiado restrita de agência que numerosas teorias sociobiológicas atribuem aos organismos. (Latour 2006:6-7)
THE SOCIAL AS ASSOCIATION:
irei definir o social não já como um domínio especial, uma realidade específica ou uma coisa particular, mas apenas como um movimento muito particular de re-associação ou de reagrupamento [reassembling; recomposição]. (Latour 2006:7)
SOCIAL COMO MOVIMENTO PODE FALHAR:
A qualidade de ‘social’ já não é mais algo de não problemático e seguro, porquanto trata-se de um movimento que pode falhar o estabelecimento de novas conexões ou o redesenho de um agrupamento [assemblage; conjunto, montagem] bem constituído. (Latour 2006:8)
O SOCIAL COMO ASSOCIAÇÃO:
[O] social não é um tipo de coisa que seja visível ou apta a ser postulada. É visível apenas pelos vestígios [traces; rastros] que deixa (através de tentativas [under trials]) sempre que uma nova associação entre elementos, que não [são] em si de forma alguma sociais, está a ser gerada. (Latour 2006:8)
ANT:
Estava disposto a deixar cair [drop; abandonar] esta etiqueta em proveito de nomes mais sofisticados, como ‘sociologia da tradução’, ‘ontologia do actante-rizoma’, ou ‘sociologia da inovação’, quando alguém me chamou à atenção de que o acrónimo ANT [Actor-Network-Theory, mas também “formiga” em inglês] era perfeito para designar um viajante cego, simplório, que apenas fareja os trilhos e anda em grupo [a blind, myopic, workaholic, trail-sniffing, and collective traveler; um viajante cego, míope, viciado em trabalho, farejador de trilhas e coletivo]. (Latour 2006:9)
TRÊS CRITÉRIOS PARA SER ANT:
(1) os não-humanos “têm de ser actores […] e não simplesmente os infelizes suportes de projecções simbólicas”; (2) o social não pode ser a constante mas sim a variável; (3) qualquer desconstrução deve visar uma recomposição do social. (Latour 2006:)
SEGUIR OS AGENTES:
A tarefa já não é a de impor uma ordem, de limitar o leque de entidades aceitáveis, de ensinar aos actores o que eles são, ou de acrescentar alguma reflexividade à sua prática inconsciente. Para retomar um slogan da Teoria do actor-rede, é preciso ‘seguir os próprios actores’, quer dizer, tentar lidar com as suas inovações muitas vezes indomáveis, de modo a aprender com eles o que a existência colectiva se tornou nas suas mãos, que métodos é que elaboraram para a ajustar, e quais são os relatos que melhor definem as novas associações que foram obrigados a estabelecer. (Latour 2006:11)
TEORIA DA RELATIVIDADE:
Uma forma mais radical de relacionar as duas escolas pode ser proposta através de um paralelo algo arriscado com a história da física: a sociologia do social é ‘pré-relativista’, enquanto que a nossa sociologia seria plenamente ‘relativista’. Quando tratamos de processos lentos de mudança, uma interpretação pré-relativista é adequada e os quadros fixos de referência podem, sem grande deformação, registar as acções. Mas logo que as coisas aceleram, as inovações proliferam, e as entidades são múltiplas: aqui esse quadro absolutista vai então gerar dados que se tornam desesperantemente confusos. É aqui que uma solução relativista tem de ser desenhada para que seja capaz de se mover entre os quadros de referência e de recuperar alguma espécie de comensurabilidade entre os sinais que provêm de estruturas que transitam a várias velocidades e com diferentes acelerações. (Latour 2006:12)
QUARENTENA EXPERIMENTAL DO SOCIAL:
Até onde poderemos ir se suspendermos a hipótese do senso comum que diz que a existência dum domínio social oferece um quadro de referência legítimo para as ciências sociais? (Latour 2006:12)
SOCIOLOGIA DAS ASSOCIAÇÕES ASSUMINDO CONSEQUENTEMENTE SUA HERANÇA:
O teste final será o de verificar, no fim deste livro, se a sociologia das associações se mostrou capaz de tomar o testemunho da sociologia do social, detectando conexões novas e mais activas, mas também herdando tudo o que seja legítimo na ambição de construir uma ciência do social. (Latour 2006:13)
Estou convencido de que, se a sociologia tivesse herdado mais de G. Tarde (não esquecendo Comte, Spencer, Durkheim e Weber), poderia ter sido uma disciplina ainda mais relevante.
(Latour 2006:14)
TARDE x DURKHEIM:
Tarde sempre lamentou que Durkheim tenha abandonando a tarefa de explicar a sociedade, confundindo causa e efeito, abandonando compreensão do laço social, em favor de um projecto político que visava a engenharia social. Contra o seu jovem rival, Tarde afirmava vigorosamente que o social não constituía um domínio particular da realidade, mas um princípio de conexões […]. Acima de tudo, Tarde concebia o social, não como um tipo específico de organismo, mas como um fluído em circulação que se devia observar com novos métodos. […] [E]le é um dos poucos, tal como Harold Garfinkel, que pensaram que a sociologia podia ser uma ciência que relatasse a maneira como a sociedade se mantém junta, em vez de usar a sociedade para explicar outras coisas ou para ajudar a resolver alguma das questões políticas da época. (Latour 2006:13)
TARDE E O PONTO DE VISTA SOCIOLÓGICO UNIVERSAL:
‘Mas isto quer dizer que cada coisa é uma sociedade e que todas as coisas são sociedades. E é bastante notório que a ciência tenda, mediante uma sequência lógica dos seus movimentos anteriores, a generalizar estranhamente a noção de sociedade. Ela fala-nos de sociedades celulares, porque não de sociedades atómicas? Isto para não falar das sociedades de estrelas, dos sistemas solares. Todas as ciências parecem destinadas a tornar-se ramos da sociologia.’ (Tarde, in: Latour 2006:14)
Mas isso supõe, em primeiro lugar, que toda coisa é uma sociedade, que todo fenômeno é um fato social. Ora, é significativo que a ciência tenda, aliás por uma continuidade lógica de suas tendências precedentes, a generalizar estranhamente a noção de sociedade. Ela nos fala de sociedades animais […], de sociedades celulares, e por que não de sociedades atômicas? Ia-me esquecendo das sociedades de astros, os sistemas solares e estelares. Todas as ciências parecem destinadas a tornarem-se ramos da sociologia. (Tarde 2007:81)
MONADOLOGIA TARDEANA:
Tudo, mesmo o que se encontra agora difundido em todas as mentes cultivadas e ensinado mesmo na escola primária, começou por ser o segredo duma mente solitária, de onde uma pequena chama bruxuleante enviou os seus raios, inicialmente de forma incipiente e encontrando muitos obstáculos, mas, aumentando à medida que se espalhava, com o tempo se tornou uma iluminação brilhante. Actualmente, se parece evidente que a ciência foi assim construída, também é verdade que a construção de cada dogma, código legal, governo, ou regime económico foi efectuado da mesma maneira. E se poderá haver alguma dúvida em relação à linguagem e à ética devido à obscuridade da sua origem e à lentidão das suas transformações, que as impedem a sua observação durante grande parte da sua história, não será altamente provável que a sua evolução tenha seguido o mesmo caminho?’ (Tarde, in: Latour 2006:15)
UNIDADES ANALÍTICAS DE TARDE (inovações, quanta de diferença)
As entidades com que Tarde lida não são pessoas, mas inovações, quanta de mudança que têm uma vida própria (Latour 2006:15)
IDENTIDADE:
[A] identidade é um mínimo e, assim, um género de diferença, de tipo muito raro, do mesmo modo que o repouso é um tipo de movimento, e o círculo um tipo de elipse. Partir de uma identidade primordial implica começar por uma singularidade prodigiosamente improvável (Tarde, in: Latour 2006:15)
TRÊS TAREFAS DISTINTAS DA SOCIOLOGIA
[1] Como configurar [deploy; desdobrar] as várias controvérsias acerca de associações sem restringir, à partida, o social a um domínio específico? […] [2] Como tornar plenamente delineáveis [traceable; rastreáveis] os meios que permitem aos actores estabilizarem essas controvérsias? […] [3] Através de que procedimentos será possível reagrupar [reassemble; recompor] o social, não numa sociedade mas num colectivo? (Latour 2006:15)
RESUMO DO LIVRO:
[1] Na primeira parte, mostrarei porque não deveremos limitar à partida os tipos de seres que povoam o mundo social. As ciências sociais foram pouco ousadas na forma como modelaram a grande complexidade das associações com que se depararam. É na verdade possível alimentarmo-nos, por assim dizer, de controvérsias, e aprendermos a tornar-nos bons relativistas – certamente uma indispensável preparação antes de nos aventuramos em novo território. [2] Na segunda parte veremos como é possível tornar as conexões sociais delineáveis, seguindo o trabalho efectuado para estabilizar as controvérsias abordadas na primeira parte. Recorrendo a uma metáfora cartográfica, poder-se-ia dizer que a ANT se esforça por tornar o mundo social tão plano quanto possível, de modo a assegurar que o estabelecimento de qualquer novo laço será claramente visível. [3] Finalmente, veremos na conclusão porque razão valerá a pena prosseguir a tarefa de agrupar o colectivo, mas apenas depois de se terem abandonado os atalhos da sociedade e da ‘explicação social’. Se é verdade que as visões da sociedade oferecidas pelos sociólogos do social foram sobretudo uma maneira de garantir a paz civil na época do modernismo, então que espécie de vida colectiva e que tipo de saber os sociólogos das associações poderão recolher, agora que a dúvida paira sobre a modernização, e a tarefa mais importante consiste em encontrar formas de coabitação? (Latour 2006:16)
NÃO É METODOLOGIA, MAS SIM UM GUIA DE VIAGEM: (Latour 2006:16)